Muito Gelo e Dois Dedos D'Água,
de Daniel Filho (Brasil, 2006)
por Marcus Mello

Comédia de (muitos) erros

Em Contrastes Humanos (Sullivan’s Travels), de Preston Sturges, um consagrado diretor de comédias renega sua obra para dedicar-se à produção de um filme “sério”. Depois de se envolver numa história rocambolesca, o personagem cai em desgraça e termina preso. No presídio, irá mudar de opinião ao descobrir que a única felicidade daqueles homens simples e sofridos está nas sessões de cinema lá organizadas, onde costumam ser exibidas as comédias que ele tanto desprezava. Nesta que é sua obra-prima, Sturges fez a mais perfeita defesa do cinema popular realizada por Hollywood. Já naquela época (1941), o diretor demonstrava ter consciência de algo que hoje é moeda corrente: filmes populares, capazes de dialogar com um público mais amplo, são peças essenciais em qualquer cinematografia – e eis aí o divertido O Diabo Veste Prada, liderando as bilheterias no país, para comprovar.

Com o cinema brasileiro não deveria ser diferente: um cinema popular de qualidade é tão necessário quanto as mais radicais experiências autorais. Quero crer que o diretor Daniel Filho e os roteiristas Fernanda Young e Alexandre Machado, ao se lançarem ao projeto que deu origem a este Muito Gelo e Dois Dedos d’Água, vinham imbuídos das melhores intenções, querendo fazer uma boa e honesta comédia de situações, na linha das screwball comedies americanas (como, aliás, as realizadas por Sturges). Afinal, ninguém, em sã consciência, levanta recursos e reúne uma equipe de duzentas pessoas com o objetivo de fazer o pior filme do mundo.

Por improvável que pareça, no entanto, Young, Machado e Filho dão realmente a impressão de terem feito todo o esforço possível com Muito Gelo e Dois Dedos d’Água para cometerem o pior filme do mundo. As potencialidades cômicas da história, envolvendo duas netas (Mariana Ximenes e Paloma Duarte) que raptam a avó megera (Laura Cardoso) para se vingarem dos maus-tratos recebidos no passado, são implodidas por um desfile incessante de seqüências de inacreditável mau-gosto (o strip-tease ao som de Rosana e Sidney Magal, a tortura da avó no banheiro, a conversa “romântica” no telhado). Para tornar tudo ainda mais difícil para o espectador de boa vontade, tais cenas vêm recheadas com diálogos que se situam entre o patético (“Você é um iceberg dentro de uma piscina de plástico”) e o francamente desrespeitoso (as referências a Ayrton Senna).

Quem está habituado às “boutades” televisivas de Fernanda Young – que numa de suas antigas participações no programa Saia Justa chegou a fazer referências ofensivas a crianças mutiladas na guerra do Iraque –, não irá estranhar o tom. Mas estranhará sim o fato de que a roteirista e escritora, já com uma larga estrada no ofício, ainda não aprendeu que a incorreção política só funciona quando acompanhada de um mínimo de elegância na realização. Mas aparentemente, para encenar o material que o casal Young-Machado lhe colocou nas mãos, Daniel Filho foi buscar inspiração não no já citado Preston Sturges, como seria recomendável, e sim em J. B Tanko, diretor de várias aventuras dos Trapalhões. As cenas de perseguição de carro e os toscos efeitos digitais utilizados à exaustão ao longo do filme nos fazem lembrar dos melhores momentos de O Trapalhão no Planeta dos Macacos (1976). Já o uso das animações à la Richard Linklater (que conseguem ser piores do que aqueles comerciais animados do Unibanco) revela um esforço quase ingênuo para parecer pop, sem trazer qualquer benefício à trama.

Visto em uma sessão quase lotada no Unibanco Arteplex, em seu fim de semana de estréia, Muito Gelo e Dois Dedos d’Água provocou pouco riso entre a platéia presente. Como o riso é algo que o filme busca histericamente o tempo todo, suspeita-se que Daniel Filho não conseguirá repetir o desempenho de Se Eu Fosse Você nas bilheterias.

 

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta