história(s) do cinema brasileiro
Crônica de um desaparecimento
Muito Prazer, documento da vida de David Neves
por Andrea Ormond

Muito Prazer, de David Neves (Brasil, 1979)

Muito PrazerDavid E. Neves - E. de Eulálio, lembrança da família materna - foi o cronista em êxtase. Amaldiçoou o delírio solitário, quis ser uno, o abraço furtivo no homem qualquer da rotina. Ouvido atento, "mania de observação" que ele próprio havia diagnosticado, bastava um lugar, uma pessoa, o geist, e ia gestos largos, sorriso, a lágrima engatilhada. Como uma consciência falante, o elo entre o bate-papo e a posteridade. Desenhou, escreveu. Os livros Cinema Novo no Brasil (1966), em uma ponta, e Crônicas do meu bar (1993) na extremidade oposta, escrito na antevéspera da morte (1994), colocam o aspecto memorialista como sua premissa existencial. Anotações de alguém que olhava, pouco importando ser olhado de volta. Era preciso se fundir, almejar uma irmandade.

Foi assim com Paulo Emílio Salles Gomes, de quem guardou as críticas no "O Estado de São Paulo" e para quem as recitava, de cor, quando os argumentos do pastor sumiam. Foi assim com Alexandre Eulálio, o primo querido, austero, que lhe serviu de pai, irmão, e que o guiava. Foi assim com Humberto Mauro, funcionário no INCE, de quem gostava de ouvir a filosofia interiorana e multimídia, visitar aos sábados, caminhar nos mesmos passos, gravar fotografias com sobras de negativo. Montou o curta Mauro, Humberto (1966) totalmente por acaso, ganhou um prêmio e doou-o na íntegra ao founding father, que passa a chamá-lo de "São David", providencial pagador das contas.

Millennium MamboFilho de militar, insuspeito, guarda as latas do documentário Cabra Marcado Para Morrer (1964-1984, foto), de Eduardo Coutinho. Guerrilha sim, mas rohmeriana - um dos adjetivos que mais lhe grudaram na veneta. Trator carinhoso. Cônsul do movimento que acompanha desde as origens, em uma das vertentes cariocas - rua da Matriz, bairro da Tijuca. Saía de Botafogo, carregava a primitiva Paillard Bolex, a caixinha que tanto fascinou Carlos Diegues, companheiro nos 16 mm Fuga (1960) e Domingo (1960), em que faz as vezes de fotógrafo. Dividiriam o jornal "O Metropolitano" e os bancos da faculdade de Direito da PUC, ao lado de Artur da Távola, Arnaldo Jabor. Participa, também na fotografia, de Perseguição (1958), experimento do discípulo de Antônio Moniz Vianna, Paulo Perdigão, programador idílico das madrugadas na Tv Globo. Alexandre Eulálio apresenta-o a Joaquim Pedro de Andrade e David se torna assistente em Couro de Gato (1960) e Garrincha, Alegria do Povo (1962). Juntam-se, portanto, algumas das pontas bifurcadas do Cinema Novo. O núcleo que conheceu muito jovem e o que trava contato agora, por intermédio de JPA. No meio de tudo, manipula fissurado os equipamentos trazidos por Arne Sucksdorff, que incluem a mitológica Steenbeck - moviola de Vidas Secas, Terra em Transe, Os Fuzis, do interditado Maioria Absoluta e demais, por anos a fio.

A tentação da vida burocrática vai se extinguindo, resto de culpa comezinha, à medida em que David pontifica na Bienal de São Paulo de 1961, nas jornadas pela Itália, nos bastidores - júri, convidado dentro e fora do país -, dando alma ao sonho pessoal e alheio, em que se lança com incrível sofreguidão. Adia o começo nos longas-metragens até 1969, quando Memória de Helena nasce de um jorro. Paulo Emílio burila o roteiro, deixa a impressão mauriana - aliás, Humberto Mauro aparece como ator -, reforçada pelo encantamento de David, comandante, seguro. Usa Diamantina, terra da família, e os diários de uma garota de capital - como Rosa Maria Pena, a atriz-protagonista, cujos livros são captados na tela. Lúcia McCartney, Uma Garota de Programa (1971) acontece pouco depois, novamente focado no que se possa chamar de '"universo feminino" - que desembocaria nos seguintes, como no suffragette Luz del Fuego (1982) - apesar da aura de testosterona que envolve Rubem Fonseca e o chumbado Mandrake (Paulo Villaça). Intercruzamento de histórias, Adriana Prieto domina a situação, filme que deixa o sal e o doce do diretor que abdicaria das câmeras, fecha-se em um hiato de quase dez anos até inundar Muito Prazer (1979). Retorno de fato a quem já possuía a prerrogativa, de direito.

Millennium MamboDavid importa Irving São Paulo, filho do diretor Olney São Paulo, ao vê-lo em A Noiva da Cidade (1979), roteiro de Humberto Mauro, Miguel Borges e Alex Viany - este, também o diretor. Viany, combatente de longa data, figura bruxuleante no prólogo de Muito Prazer. Camiseta aberta, bermuda, chinelos na orla da praia durante o carnaval, Albino Pinheiro - ator em Lúcia McCartney -naturalmenteno corso. Estão anônimos, servem de palco para os garotos Leléu (Irving), Pacheco (Júlio Luiz) e Manteiga (Marcelo Lopes), vendedores de amendoim na porta do escritório de outro trio, os arquitetos Chico (Antônio Pedro), Aquino (Cecil Thiré) e Ivan (Otávio Augusto).

"Ah, sei lá, eu acho que eles têm medo de mim. Eu também sou meio endiabrado." Leléu sabe que é alguma ameaça, mas não se faz de rogado, de cruel ou de vítima. Se agisse assim, a empatia de Muito Prazer acabaria logo, no marco zero. Não bancam a tese de pequenos sofredores engolidos pelo sistema. Os arquitetos os protegem e perdoam sua existência errática no bairro. Os meninos olham os arquitetos como as crianças olham os adultos: num misto de curiosidade, deboche e admiração. Na estratégia de David, a câmera acompanha a todos de perto - como se desse voz a eles - e de longe - como se fosse um terceiro. As correrias dos pivetes, as relações dos casais Aquino-Ângela, Ivan-Nádia (Ítala Nandi), casamento no terceiro milênio. Bode dos porres de Ivan, o dínamo que virou alcoólatra. Aquino, metódico, avança para cima de Nádia e bem que a mamãe de Ângela havia alertado. Sortilégios de sogra megera que cheira a fumaça branca da nova papisa chegando.

Millennium MamboAtenção para o sonho revelador de Aquino: Nádia coberta pelos moleques, Aquino assistindo idiotizado, apanhando, pintam-lhe a cara de preto. Visual animalesco, diferente da linha paz e amor que se associa a David. Embaixo de tudo, a mensagem de se igualar adultos e garotos, a ponto de estes influenciarem o comportamento daqueles, misturados que estão no ouriço. E acontece que apesar da investida de Aquino, Nádia gosta de encarar umas por aí. Insatisfeita no Antonio's, mulher teorizando, lei do Divórcio aprovada, mas ainda sem trabalhar fora de casa. A empregada cordial, os filhos para levar na escola. Uma das saídas de Nádia é Paulo César Saraceni, diretor na onda de galã. Pequenininha emissão vocal, badala numa cena de nu, redentora para as grilações de Nádia, que se sente cobiçada depois dos anos de depressão – e amor – com Ivan.

Chico, fechado, sem mulher, talvez seja o gay que precisasse existir e encher as conversas de Ângela, a tolinha, que duvida do time do moço. Chico é o sparring, o controle da balança que pende entre Ivan e Aquino. Ivan, ridicularizado e invejado pela intimidade com a noite, o jeitão de poeta. Recita piadas sem graça, dorme fora de horário, o fígado piscando. É a personagem que apronta a participação de Nelson Cavaquinho, aquela epifania de Rio de Janeiro, o violão em pé sobre o colo, os dedos pulando manhosos. Os garotos aparecem, azucrinam, Ivan os afasta mas acalma o dono do boteco, coitado ludibriado.

Millennium MamboTudo bem que os de menor se sentirão mal ao caçoarem de Ivan no momento seguinte, mas até aí ainda havia uma tranqüilidade no convívio com os bacanas. Depois, quebrado o ovo da serpente, Leléu e Manteiga puxam a bolsa de Nádia, entram para o bando de um malaco de óculos escuros. Quando Pacheco - o único a resistir à ladroeira - desaparece atrás de uma árvore, no corte rápido da montagem, será o fim. Está acabada a era da inocência. Somada às broncas dos arquitetos e esposas, o fator dos pivetes também não ajuda mais, parece esgotada a capacidade de diálogo. Em qualquer combinação.

Millennium MamboPrimeiro tempo da série que continuou em Fulaninha (1986) e no derradeiro Jardim de Alah (1989), Muito Prazer narra o paraíso antes da peste. A cidade cordial, relaxada, irreverente, em que o executivo (Carlos Kroeber) rouba os amendoins de Leléu na cara dura, mais pelo prazer da ironia. Os meninos usam espelhinhos, jogam reflexos sobre os passantes, sobem em uma árvore para verem Ângela pelada. O argumento de David e Joaquim Vaz de Carvalho metaforiza o ocaso do Rio de Janeiro, o ocaso das convivências pacíficas. Muito Prazer não é, portanto, apenas obra-prima de ponto de vista davidiano, é o documento final de um estilo de vida. Fulaninha coloca outros dois grupos se tangenciando. A adolescente e a mãe, comentadas pelos pilantras amorosos, quarentões, e vice-versa. O lado priápico aumenta. Jardim de Alah mostra o combo de vizinhos, o tal gargalo econômico e de gerações, unindo-se aos outros dois filmes pela volúpia da cidade amada. Pelo mesmo retrato do inexorável - a morte, o desentendimento, a impossibilidade de conquistar - mas com atenuantes de lirismo, geografia das gentes na zona sul carioca. Hugo Carvana é parente próximo, arautos de um microcosmo. Amém para os hábitos, os valores, os símbolos. 

"Monte de amigos", "aquele abraço", trilha sonora diáfana e perdida de Carlos Moletta, David Neves cultivou em Muito Prazer a persona gregária de que virou sinônimo. "Davizinho", o sacerdote do bem, a eminência parda da tribo cinemanovista, hoje relegado esquizamente a notas de pé de página. Alguns desaparecimentos ensinam, outros oprimem. Em David, ele chegou escuro, um manto esguio, difícil. Retirado, abrem-se espaços para a poética de coisas que não se pode enterrar e que ele amansava cuidadoso, aparente superficialidade que batia em esfera única, indizível.

Julho de 2011

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