in loco - cobertura dos festivais
A Mulher Sem Cabeça (La mujer sin cabeza),
de Lucrecia Martel (Argentina/França, 2008) por
Eduardo Valente Cinema
fantástico
A Mulher Sem Cabeça
poderia facilmente ser encaixado numa mostra de cinema fantástico. Sim,
porque mesmo que e de fato não aconteça nada de sobrenatural no filme (há
controvérsias sobre a aparição de alguns fantasmas em cena), Lucrecia Martel explora
ao máximo no filme este que sempre foi um dos seus maiores talentos: o
de manipular com precisão o quadro cinematográfico, com suas entradas e saídas
de cena, seus cantos e espaço exterior (através de um uso sempre impressionante
do som), para fazer de A Mulher Sem Cabeça um filme de suspense
que não se afirma como tal; um filme de horror que não se afirma como tal; um
filme fantástico que não se afirma como tal - sem deixar de ser nunca nenhum dos
três, mas sem precisar afirmar-se dentro de convenções de
gênero.
Todas
essas dimensões se dão no filme a partir do ponto de vista da personagem principal
que, depois de um acidente aparentemente banal, perde completamente as estribeiras
da realidade à sua volta. Não consegue manter uma conversa inteira, exercer sua
profissão, parece às vezes não reconhecer ou confundir as pessoas (a cena em que
ela e a sua mãe esclerosada vêem um vídeo de casamento é absolutamente preciosa),
vive uma rotina de cenas cujo ritmo se sucede como flashes de memória e
percepção (com alguns cortes entre seqüências incrivelmente fortes). Para nos
remeter a este estado, Martel busca reforçar seu domínio do quadro cinematográfico
(aqui realizado num cinemascope incrivelmente claustrofóbico). A qualquer
momento, sentimos que qualquer coisa pode acontecer: a aparição de um personagem
em cena, a revelação de um elemento externo desconhecido, a localização a posteriori
num espaço. Sob
muitos sentidos, A Mulher Sem Cabeça é um filme lynchiano
(quando a personagem ressurge na parte final do filme com os cabelos loiros tingidos
de preto, a impressão fica ainda mais forte). Só que Martel, ao contrário
de tantos supostos admiradores de Lynch, não tenta copiar o seu estilo e sim filmar
alguns dos estados mentais que ele tão bem filmou ao longo da sua carreira, dentro
daquilo que ela sabe fazer melhor como cineasta. Se a segunda metade do filme
não tem tanta energia em movimento como a primeira (ainda que com seqüências
impressionantes, vide a carona que a personagem dá a uma menina, onde o simples
enquadramento usado cria uma desconfortabilíssima sensação de que um acidente
acontecerá a qualquer momento), A Mulher Sem Cabeça não deixa nunca
de ser um filme fantástico – em todos os sentidos. Maio
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
|