in loco - II semana dos realizadores
Mulher à Tarde, de
Affonso Uchoa (Brasil, 2010)
por Fábio Andrade
Ecoando
no vazio
Mulher à Tarde parte da idéia de instante pregnante, que é
tirada não exatamente do cinema, mas da pintura e da fotografia:
o recorte de uma pose dentro de uma duração de instantes quaisquer,
que é o momento que, idealmente, expressa a essência do que se
dá nessa duração. Entrecortado por cartelas que parafraseiam os
títulos descritivos tão comuns na pintura (Mulher com o sol
sobre os joelhos; mulher deitada; etc), Mulher à Tarde
usa o cinema para dar acesso justamente ao que está ausente das
pinturas: a maneira como a sucessão de instantes quaisquer conduz
à fixação de um deles como um instante pregnante. Ao fim de cada
parte, a ação das personagens desemboca naquela que intitulava
sua respectiva parte, e somos conduzidos a uma nova ação. O instante
pregnante vem carregado por aquilo que antecede a pose, e é reconfigurado
na migração da pintura para o cinema.
É
bastante natural que um filme primordialmente interessado pela
duração dos movimentos se estruture como Mulher à Tarde:
sequências de longos planos em tableau que nunca permitem
o contraplano, e que acompanham as personagens no decorrer de
suas ações dentro do espaço. É perceptível um forte rigor na composição
dos enquadramentos e da luz, além de uma direção de atores de
notável limpeza, que se concentra em frases murmuradas e gestos
desnudados de maior expansão. A predominância do foco pontual
traz outros paralelos com a pintura, onde o desfoque do fundo
evoca pinceladas impressionistas, e a rarefação pixelar do vídeo,
acentuada pelo trabalho de foco, por vezes faz pensar no atomismo
de Seurat, onde as figuras humanas parecem prestes a evaporar
no ar. O gosto pelo prosaico acentua o esvaziamento da cena, onde
se limpar com um pano molhado se torna um ápice dramático, e o
silêncio é tão palpável que uma das personagens consegue ouvir
o barulho emanado pelos objetos.
Até
aqui nos concentramos na pedra fundamental conceitual de onde
parte o diretor; mas o cinema é composto de filmes, portanto é
preciso olhar menos para o raciocínio gerador e mais para a obra
que ele alimenta. Mulher à Tarde se quebra justamente nesse
salto do conceito ao filme. Assim como acontecia em medida mais
leve com Terras, de Maya Da-Rin, o contato proposto pelo
filme vem mais pelo entendimento do que pela sensibilidade. As
linhas de roteiro que costuram os quadros (a onipresença da água;
a parede que deixa marcas na menina, e a menina que deixa marcas
na parede; a lembrança desaparecida na caixa de fotografias que
remetem às composições em still preponderantes no filme)
não são suficientemente fortes para transformar essa sucessão
em algo mais do que uma repetição, e a repetição por si só não
produz qualquer estímulo que já não estivesse contido em uma única
parte.
E se tivéssemos apenas uma
das poses, em vez das várias que estão no filme? Apreendemos algo
da duração e do acúmulo que já não pudesse ser apreendido diretamente
de um dos vários fragmentos que compõem o filme? Mulher à Tarde
deixa que essas inquietações ecoem no silêncio mole e um tanto
enfadonho de sua duração, tão dedicado à beleza de planos que
não são suficientemente belos, e reticente em relação a sentimentos
que não parecem realmente estar ali. O que sobra é essa relação
fria e um tanto acomodada com uma idéia que parece se perder antes
mesmo de se materializar, e que sufoca a fagulha inicial que lhe
conferia algum brilho com uma morosidade rigorosa e um desejo
desmedido de querer dizer mais do que realmente se tem a dizer.
Janeiro de 2010
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