A
Fuga da Mulher-Gorila,
de Felipe Bragança e Marina Meliande (Brasil,
2009)
por Fábio Andrade
O
afeto do esvaziamento
É bastante
acertada a escolha de Felipe Bragança e Marina Meliande de revelarem a especificidade
do modo de produção de A Fuga da Mulher-Gorila (realizado em 8 dias, por
uma equipe mínima que carregava apenas o que cabia em uma kombi que, por sua vez,
era, ao mesmo tempo, carro de produção e objeto de cena) apenas nos créditos de
encerramento. Se viesse antes de o filme começar, a informação talvez desse margem
– como muitos apontaram, independente de justiça, a respeito da carta de intenções
do B.O.A.A. que Domingos Oliveira usou como abertura de Carreiras – para ser interpretada
como um equivocado pedido de desculpas, uma justificativa para uma suposta precariedade
assumida pelo filme com plena tranquilidade. Ao fim, a cartela de encerramento
ganha um tom que não é oposto, pois isso seria partir de uma mesma lógica. Mas,
diferente, ela ratifica uma entrega absoluta, um sentimento de criação conjunta
que estava impresso, mas não exatamente explicado, no filme que acabávamos de
assistir. Existe, portanto, uma obra que se oferece como acabada (e não fechada),
com pés que sustentam o peso de seu próprio corpo. A
opção por minimizar a produção é não somente uma posição política, mas sobretudo
uma questão estética: A Fuga da Mulher-Gorila é fruto da crença na leveza,
no embarque, no prazer da realização como matriz para um efeito artístico. Para
não esvaziar sua proposta, é preciso que essa entrega não contemple sua própria
existência, mas que seja apenas um método, uma maneira de construir a obra de
arte. Construir, nesse caso, é palavra importante, que A Fuga da Mulher-Gorila
parece determinado a abraçar. Temos duas artistas itinerantes (Flora e Morena
- nomes das personagens e das atrizes) errando pelos cacos do mundo, viajando
na kombi roubada na qual transportam o cenário do show da mulher-gorila. A prevalência
dos espaços não-edificados, parcialmente demolidos ou despidos de funções, funciona
como uma tela em branco; o mundo não faz sentido algum, e isso é maravilhoso e
perverso. Esse
mundo desértico e abandonado é, ao fim e ao cabo, o próprio cinema. A Fuga
da Mulher-Gorila faz um complexo jogo de espelhamento, que se torna ainda
mais forte por não ser auto-evidente – o que faria do filme apenas um registro
de seus princípios de realização. Assim como as personagens, a equipe também vaga
pelo mundo em uma kombi junto com os aparatos de um espetáculo, e procuram, nesse
trânsito, encontrar espaços onde essa transformação – apresentada sempre em planos
médios ou fechados, recortada de seu entorno – possa ser realizada. Ambos partem
de um mesmo estado de insatisfação e inquietude (mais tarde descobriremos que
Morena abandonara um filho recém-nascido para cair na estrada), buscando, na realização
artística do dia-a-dia, a satisfação do agora. A atividade
específica é, também, extremamente reveladora: a transformação da mulher em aparência
de gorila funciona por um jogo de espelhos. Há, aí, um comentário sobre o cinema:
pegar uma matéria comum, à qual as vistas já estão acostumadas, e, com um truque,
fazê-la parecer se tornar outra coisa. A mulher, imagem exuberante e comportada,
destrói seus limites em potência selvagem e indomável, um corpo em movimento de
indócil brutalidade. A partir da mulher, uma fantasia. A Fuga da Mulher-Gorila
é, portanto, um filme assumidamente afeito a um cinema de construção, onde o espaço
vazio é o convite ao preenchimento, e o real – aparentemente enfatizado pela mobilidade
absoluta de câmera e vetores em quadro – é um labirinto de rotas de fuga que desembocam
no trabalho com o gênero, nos escapes para as canções, na deformação da palavra.
Nesse sentido, é essencial o encontro das meninas com Alberto:
ao fim de uma bela sequência de panorâmicas, vemos o rapaz praticando para um
teste de ator, repetindo a frase "Não, não, ele está com uma arma!".
A repetição, por ele e por elas, é re-moldada em diferentes entonações, tateando
como a deformação da voz (a forma) altera o significado das palavras. O apreço
pela declamação, bem ao modo do tratamento do texto no cinema de João César Monteiro
(O Último Mergulho, principalmente), é mais um recurso para esculpir um
mundo, usando a vida como matéria-prima. A arte precisa modificar o que ela vê
pois, como disse Jia Zhang-ke em entrevista
concedida ao próprio Felipe, aqui na Cinética, "em muitos momentos, a
intervenção 'surrealista' é muito mais verdadeira para essa expressão do mundo".
É ela a única capaz de transformar a mulher em gorila, a palavra em poesia, a
fala em canto, a paisagem (aqui, apocalíptica a beirar a ficção científica) em
cena, as linhas em composição. A vontade de construir sentidos
não é, porém, desvio de pretensões anacrônicas. Mais do que isso, é o confronto
das personagens com um mundo desprovido de sentidos ou julgamentos pré-estabelecidos.
A evidência mais clara desse sentimento está no fato de A Fuga da Mulher-Gorila
ser, a rigor, um road movie. Apesar de a estrada ser a metáfora mais óbvia
para um arco dramático de uma tradicional narrativa de Pícaro (a personagem que
sai de um lugar para chegar a um destino, passando por uma jornada de engrandecimento),
aqui a jornada é o seu próprio sentido. Quando, próximo ao final do filme, Flora
diz que elas precisam comprar gasolina, Morena rebate: para ir aonde? Se a ausência
de destino pode parecer um tanto trágica, ela é, também, a liberdade de poder
declarar o destino apenas quando surgir a sensação de já tê-lo alcançado. Os olhos
se voltam para seu imediato, em uma vontade de arder em chamas, de se consumir
em sua própria fome. A arte seria a própria realização artística, mas o apreço
pela construção faz dessa fuga um processo restaurador. Mais do que simplesmente
registrar um sentimento esvaziado, ela é a criação de uma obra que, ao se apresentar
para o espectador, oferece a possibilidade de preencher esse vazio com o coração
que lhe era original. Janeiro de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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