in loco - cobertura dos festivais
Mundo Invisível,
de Manoel de Oliveira, Jerzy Stuhr, Guy Maddin,
Gian Vittorio Baldi, Marco Bechis, Wim Wenders,
Maria de Medeiros, Theo Angelopolous, Atom Egoyan, Laís Bodanzky, Beto Brant e Cisco Vasques
(Brasil, 2012)

por Paulo Santos Lima

A luta pela visibilidade, drama do cineasta

Escrever sobre filmes que reúnem episódios de diversos diretores pode demandar seguir o comentário de Inácio Araujo, em sua crítica a este Mundo Invisível na Folha de S. Paulo, que diz ser um caminho para o espectador situar-se como numa sessão de curtas. Pode ser, mas é bom, antes, lembrar do caso de Longe do Vietnã (1967). Dos seus sete segmentos, cada um dirigido por um cineasta, o de Jean-Luc Godard é o único assinado, com um “Viet-nam Godard” escrito numa claquete aparecendo na tela. Não bastasse diferenciar seu trabalho num filme que idealizado como um manifesto coletivo, que junta as partes sem indicar quem as filmou, Godard foi além e, na narração, indiretamente afrontou o projeto ideológico do longa, que seria um gesto de “assistencialismo” furado, que não reconhecia propriamente quem eram aqueles vietnamitas vitimados pelo imperialismo norte-americano. Se não há dificuldade em refletir sobre um Conceição: Autor Bom É Autor Morto (2007), que reuniu algumas forças criativas que dirigiram o que resultou num corpo único, como lidar com um Longe do Vietnã ou um Mundo Invisível senão pelos fragmentos, suspeitando da postura do cineasta distinta daquela que ele talvez tomasse num trabalho single, sem a “interferência” de outros? Talvez como soma, mesmo que haja números, letras e algarismos romanos – ou seja, descolamentos (sutis) da pauta ou adesões literais.

Idealizado por Leon Cakoff e Renata de Almeida, Mundo Invisível é um projeto que reuniu 11 cineastas estrangeiros e brasileiros para tratar da invisibilidade no mundo de hoje. O projeto demandou anos e foi concluído agora, em 2012, com a inclusão do segmento Kreuko, de Beto Brant e Cisco Vasques, que talvez seja o mais dissonante ao tema. Kreuko perpassa A Montanha Mágica de Thomas Mann, junta música e teatro, José Wilker, Sonia Braga e Júpiter Apple, e comenta a pauta pelo avesso: contra a morte, que é um apagamento, grita-se pela arte. Brant e Vasques confirmam uma assinatura bastante particular no projeto.

Wim Wenders, em seu Ver ou Não Ver, vai à literalidade da pauta e faz um “documentário institucional” sobre o auspicioso projeto de Silvia Veitman, da Santa Casa de São Paulo, que habilita crianças com visão residual para que não sejam direcionadas para uma escola para cegos. A aula de cidadania do alemão faz par com a aula de teatro proposto por Laís Bodanzky em O Ser Transparente, que mostra o conceito de “ator invisível” de Yoshi Oida. Temas bacanas, embalados com jornal. Da possível preguiça que aparentemente Wenders teve para realizar o seu trabalho, Marco Bechis parece ter gastado uma ou duas horas para filmar o interessante Tekoha. Talvez o mais curto dos segmentos, é o mais sintético e dos mais fortes, um contraexemplo do péssimo episódio que Amos Gitai rodou para Bem-vindo a São Paulo, outro projeto coletivo proposto por Cakoff. Neste Tekoha, Bechis mostra índios caminhando numa floresta que, ao chegarem ao seu destino, na avenida Paulista, revela-se a vegetação do Parque do Trianon, ali defronte o MASP. Meio rústico, poderia ser um filme universitário, no bom sentido.

Manoel de Oliveira é outro que parece ter rodado seu filme a toque de caixa. Talvez por isso (e por ser Manoel de Oliveira), Do Visível ao Invisível seja tão forte em suas imagens. Captado em digital, como os outros episódios, o maltrato do transfer reforçando uma aparência de “captação direta” do encontro entre dois amigos, Ricardo (Trepa) e Leon (Cakoff), ali perto do Conjunto Nacional. A conversa, interrompida pelos telefonemas, entra em acordo quando ambos decidem falar ao celular, frente a frente. O assunto do papo, sobre a aceleração dos tempos atuais etc., não importa. O que fica instalada é a capacidade do cinema em reter um momento tão raro, como esse encontro quase improvável no meio do caos urbano.

A contribuição de Leon vai também para o curta de Atom Egoyan, Yerevan - O Visível. É um trabalho autobiográfico em que Cakoff faz o papel de um homem que vai à praça central da capital armênia para recuperar a história do seu avô, desaparecido durante o genocídio armênio, em 1919. Leon mantém um cartaz em riste e fotografias de família, e também as que ele tirou 20 anos antes, em 1988, quando capturou imagens do protesto de grevistas armênios que resultou em violenta repressão. No meio das fotos, a de um menino que minutos depois seria morto. Um filme que confirma uma aposta na imagem, em seu poder de barrar o apagamento que a história às vezes exerce em desfavor do tal “outro lado”. Dos episódios, é o mais pessoal e documental (sobre documentos).

Outro lado, também, está em Tributo ao Público de Cinema - que faz um certo par com Shirin, de Abbas Kiarostami. O polonês Jerzy Stuhr não vai tão fundo quanto o iraniano, mas filma uma platéia assistindo ao seu próprio filme, O Tempo de Amanhã, exibido anos atrás na Mostra. A reação da platéia interessa como coleção de gestos, expressões, reações ao que está no extracampo. A luz da projeção, muitas vezes débil demais para dar contornos mais definidos aos rostos, garante uma existência, ali, que parece pretendida e destinada para o cinema. No mais, é o diretor fundindo-se ao seu trabalho e observando, cara a cara, o dramático diálogo entre obra e sua recepção.

Há outros. Um merecedor de atenção (o acuro narrativo de Maria de Medeiros em falar sobre a invisibilidade social na fábula Aventuras do Homem Invisível) e outros que não merecem menção, o que é uma decisão forte num texto que precisa catalogar as diversas experiências individuais. Mas, como encontrar um juízo sobre Mundo Invisível, já que o cada um por si parece negar a partilha de espaço num longa-metragem? Um pouco por esses interessantes diálogos ao acaso, inclusive para fora do filme, e também pelo que se revela de diretores em situações especiais como esta. Ou seja, da sensibilidade de Manoel de Oliveira a mais um projeto no qual Beto Brant esmiúça a prata do espelho que mostrará seu papel como um cineasta que, inegavelmente, é dos mais importantes da geração que surgiu na retomada dos anos 1990. Ou a visão assistencialista de um cineasta como Wim Wenders, que tanto discutiu a imagem como espectro revelador do homem. Ou de Theo Angelopoulos, encantando-se com a arte “de rua” dos gêmeos. Ou Leon Cakoff militando por uma importância documental de qualquer imagem que não apenas a do cinema. O que fica é mesmo uma dificuldade de retenção. E a explicação sobre Godard timbrar seu nome em Longe do Vietnã está nessa confusão provocada por imagens vistas em carreira. Godard, como o projeto deste Mundo Invisível, já sabia ali sobre a invisibilidade do Terceiro Mundo, do Sudeste Asiático e das imagens bem-intencionadas que mostram ao mesmo tempo que apagam.

Novembro de 2012

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