in loco - cobertura dos festivais
Na Carne e na Alma, de Alberto Salvá (Brasil, 2012)
por Thiago Brito

Sagrado e profano

Poucos são e foram os filmes contemporâneos estritamente sobre o amor. Talvez as vertigens, os deslocamentos, as carências, os afetos - talvez tudo o que estava expresso naquela imagem que tanto nos angustia, que reviravolta aparece como um demônio em nossa consciência, aquela estrada eternamente aberta e as escolhas que ela nos obriga, tenham se entreposto diante e ante nós, tenham nos impedido de falar do que por ventura nos é mais imediato, se não básico. Por tudo o que possa existir, o ato de amar encontra-se, atualmente, em uma encruzilhada quase fatalista tão arrebatada que, quando o encontramos não mais perpassado por nostalgia ou utopias maiores, ele se encontra como um verdadeiro pesadelo, ainda e mais uma vez uma doença. No filme de Alberto Salvá (seu derradeiro) o amor é um câncer que aparece e domina em desvario a vida de Rodrigo, o jovem universitário niteroiense que encontra nos seios de Mariana (literalmente) uma revelação e uma passagem.

Brutalidade é, talvez, a melhor forma de se aproximar da experiência de Na Carne e na Alma. Rodrigo parece guiado por uma noção extremamente urgente de vivência: tudo lhe aparece pautado pela noção mais clara do profano, daquilo que, pelo menos à primeira vista, é carregado de um mundano passageiro. Uma existência pífia de experiências oportunas e muitas vezes vazias de consequências - isto é, antes de Mariana e, claro, antes do Amor. Rodrigo sobrevive num mar de indiferenças e pequenos furtos afetivos, que ele trata com a diligência de um Don Juan desafetado, vivendo, em grande medida, "a vida loka". E eis que voltamos aos seios de Mariana pelo tom e pela maneira como este dado nos é apresentado. Como, diante de uma nova vida, de algo que lhe obriga imersão e transformação, Rodrigo está, talvez pela primeira vez, vivenciando algo que o aproximaria do sagrado, algo que ele, por tantos anos, ou ignorara ou decidamente desconhecera. E

Salvá não se poupa predicados: esta experiência é, sempre e mais teluricamente, brutal. A força com que Rodrigo se joga ao teatro do amour fou é impressionante. Sempre desejando mais, e mais, e mais, o rapaz está disposto a trespassar qualquer fronteira ou ato que algum dia pudesse achar repugnante – tudo para se sentir, enfim, dentro deste espectro maravilhoso que é o Amor... tudo que lhe tire da rotina mais básica e lhe devolva esta experiência única do ser amado. Rodrigo come Mariana com a fome de quem viveu por anos enclausurado e finalmente se vê diante de um banquete eterno. E, quanto mais ele come, mais fome surge - nada é o suficiente, nada jamais será suficiente. Mariana, este signo, esta menina, é transformada em algoz e santa, é sua salvação e sua eterna danação. É impressionante como Salvá jamais se afasta destas circunstâncias, e como, ao invés de buscar um distanciamento maior para com seu protagonista, ao contrário, ele se entrega, sinceramente e sem moralismos, aos exageros e dores que cortam a carne de Rodrigo. Queria Salvá nos pintar um quadro do amor neste século XXI? Que amor é este tão preso a circunstâncias trágicas, tão dado a desesperos, quiçá exageros e juras eternas, vistas, talvez, em blogs, flogs e afins? O amor vem a Rodrigo como um relâmpago, como algo que esbofeteia e o acorda para a encruzilhada real que se mostra ser, enfim, a vida. É com os seios de Mariana que Rodrigo percebe que está modificado, e é a partir daí que veremos o doloroso processo de seu crescimento, de playboy de Niterói a estagiário sério e, talvez, bem comportado.

Salvá se propôs algo raro no panorama do cinema brasileiro contemporâneo. Em vez da extrema consciência dos jogos cênicos, do cuidado estético, ou da beleza plástica da imagem e seus correlativos, o filme é feio, é bruto, é extremamente urgente. Há quebras enormes de continuidade de som e luz, há uma aposta na autenticidade mais bruta do plano e do que nele é capaz de nos mover, de nos tocar. Distanciando-se de um cinema, em falta de um termo melhor,  "bem comportado", o filme de Salvá se põe a realizar, em estrito senso, aquilo que de fato realiza: ele se entrega, de corpo e alma, aos dramas de Rodrigo e está disposto a tudo para jamais se afastar daquilo que considera importante.

E o que seria isso? Pergunta capciosa, o crítico agora se vê em maus lençóis. Podemos dizer que isso seja a potência com que as emoções e as forças do filme se apresentam; a maneira como, sem moralismos ou distanciamentos vulgares, o diretor se comprometeu com seu protagonista; como buscou, com todas as forças, retratá-lo a partir do que este personagem tinha de mais vulgar, de mais básico. Um filme punk, talvez. Mas um filme que deveras nos arrebata, porque sabe nos ferir com aquilo que ninguém pode negar - porque se propôs um retrato às vezes ridículo, às vezes inteiramente vulgar, da vida de Rodrigo. Mas, talvez, é o filme que melhor soube representar um tipo de protagonista contemporâneo que, ou não recebe atenção em grande parte dos filmes brasileiros, ou é colocado para debaixo do tapete como "efeito colateral" de uma determinada elite carioca.

Quando Rodrigo encontra Mariana pela ultima vez o fatalismo se impõe. Cada qual vai para o seu lado, e ele carrega ainda uma possível dor. Sem afã ou grandes utopias, o medo é o quanto é procedente os barulhos dos punhos de Rodrigo na parede. É o que faz do filme de Salvá, também, um filme triste. Um retrato triste. Um amor triste. E de cá eu fico pensando: em Subúrbia, Luiz Fernando Carvalho retrata um amor feliz. Um amor religioso, mas apaixonante e feliz. E penso se não existe algo que correlacione Luiz Fernando Carvalho a Alberto Salvá: no esquema do sagrado e do profano, Luiz Fernando encontra em personagens sacros, como Conceição, a reconciliação com o mundo e, consequentemente, com o amor. Em um personagem profano, como Rodrigo, Salvá encontra o desespero, a dor, a marca, o soco, o bruto. Colocando na balança, por que diabos nos identificamos tão mais rapidamente com Rodrigo, e o que se torna de fato sagrado, para nós, neste Brasil já todo transformado e aos poucos se desnudando para nós mesmos?  

Dezembro de 2012

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