edição especial curtas brasileiros 2009/2010
A beleza da/na manipulação
por Eduardo Valente

Não Me Deixe Em Casa, de Daniel Aragão (Pernambuco, 2009); e
Tchau e Benção, de Daniel Bandeira (Pernambuco, 2010)

Dois filmes pernambucanos em preto e branco sobre a crise violenta de um casal (e dirigidos ambos por um Daniel!). Seria fácil chamar o crítico de preguiçoso, apelando para as aproximações estéticas, práticas e narrativas mais superficiais ao colocar num mesmo texto Não Me Deixe Em Casa e Tchau e Benção. No entanto, o motivo real para uni-los em torno de uma mesma argumentação não tem nada a ver com a ausência de cores, a origem geográfica ou suas histórias. Acontece simplesmente que são os dois filmes (talvez com o adendo do também pernambucano N.27) de ficção brasileira que melhor trabalham com a premissa de narrativas curtas para construírem, em pouco tempo, não apenas uma história, mas um universo ficcional absolutamente preciso: ao mesmo tempo complexo e indo direto aos pontos. Tentar entender um pouco como os dois conseguem fazer isso é o grande foco de interesse aqui.

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Entre os dois filmes, certamente o mais complexo em sua construção é Não Me Deixe Em Casa – mas isso não é dito aqui como qualificação por oposição, trata-se apenas de constatar um fato referente ao escopo narrativo e de universo buscado em cada um deles. Se Tchau e Benção se passa praticamente em uma locação, em tempo cronológico corrido e com dois personagens (o que não torna suas operações cinematográficas mais fáceis, como veremos a seguir), Não Me Deixe Em Casa se abre para elipses temporais, uma série de espaços de convivência dos personagens e, principalmente, diversos jogos de relação entre estes. Mais do que isso, porém, o filme precisa incorporar, até por ser um dado central na sua narrativa, novos espaços e papéis ocupados pela imagem na vida mesmo de seus personagens adolescentes, através do computador. E esta talvez seja sua mais latente qualidade: a maneira como se coloca em contato com um estado contemporâneo de imersão em imagens sem precisar fazer disso um discurso teórico que se deseje complexo ou revelador de nada, mas tão somente um elemento que é percebido como central na sua narrativa por ser decisivo para o cotidiano dos seus personagens.

Ao falar da incorporação pelo filme destas imagens virtuais, é claro que é preciso tocar então em outra questão central aqui que é sua relação com o universo adolescente. Não Me Deixe em Casa, dos vários filmes a surgir nos últimos anos no cinema brasileiro tentando lidar com este universo (longas também, mas ainda mais nos curtas), talvez seja o que mais precisamente parece se relacionar com ele (talvez, de novo, dividindo espaço com N.27). E isso se dá menos por alguma tentativa tola de incorporação de cacoetes na sua linguagem audiovisual ou da fala dos seus personagens, mas principalmente por dois aspectos do filme. O primeiro é sua crença na maneira de sentir o mundo típica de um adolescente: sem medidas, onde todo drama é o maior do mundo, assim como todo amor é eterno. Não Me Deixe em Casa, sem precisar se “fingir” de adolescente, acredita piamente nesse estado do mundo. Não é questão de mimetizar nada, mas de tentar olhar de frente (pensamos aqui em momentos como o canto no chuveiro ou a porrada no banheiro feminino). De fato, poucos filmes conseguiram construir tão bem o envergonhado, mas firme, tesão adolescente (Superbad vem à lembrança). O outro aspecto central é a maneira como, ao fazer isso, o filme estrutura sua narrativa partilhando do ponto de vista destes personagens, para colocar o espectador ao lado deles. Assim não há espaço para que os pais sejam mais do que instâncias repressoras ou distanciadas (seus planos nas casas lembram muito, por exemplo, o traço de um Eastwood ao criar a família de Menina de Ouro), ou que os colegas da escola não sejam plenas encarnações de um bully (donde surge um dos mais fortes e inteligentes planos do filme, o que ilustra este parágrafo).

No entanto, é importante que se diga que todas as questões a que o filme nos remete se encarnam na tela com força apenas e tão somente porque Daniel Aragão domina, antes de tudo, as ferramentas da construção da ficção audiovisual. Sim, porque talvez a mais marcante qualidade do filme seja mesmo a conjugação de sua decupagem (incorporando aí a alternância entre os registros de imagem) com uma montagem inteligente nos cortes, principalmente ao construir elipses e reposicionamentos. Aragão é aqui de uma precisão cirúrgica no fluxo dos ritmos, tirando grande potência tanto de abruptos cortes como o que nos leva da transa pela primeira vez à escola ou o que logo depois interrompe a canção num crescendo; quanto de transições muito bem pensadas de ponto de vista, escala ou ângulo dos enquadramentos (o corte do vídeo dos dois amantes para o plano que revela ele sendo visto pelos colegas de escola). Usa ainda muito bem a música, num curioso trabalho de deslocamento temporal com a canção dos Isley Brothers que se justifica totalmente pelo uso de versos dela como intertítulos, encarnando o clima quase kitsch inerente ao sentimento adolescente da paixão. Pela maneira como conjuga isso tudo, Não Me deixe Em Casa parece um daqueles raros casos de um filme que consegue ser uma pequena jóia atemporal de construção narrativa e cinematográfica, mas também um filme que parece incontornável a que se volte quando quisermos entender em alguns anos onde orbitava o universo adolescente (sempre o mais marcado e marcante da sua contemporaneidade), principalmente o audiovisual, circa 2009-2010.

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Tchau e Benção é mais curto, conciso e direto. De fato, é impressionante como Daniel Bandeira consegue, em dez minutos e sem qualquer diálogo, capturar atenção e emoção do espectador em torno da narrativa de dois personagens. Há uma conjunção de fatores permitindo isso, a começar é claro pela universalidade do tema do final de uma relação, que permite a ele com algumas simples imagens construir todo um contexto. Os melhores exemplos são os do plano em que a mulher coloca objetos numa caixa de papelão (todo um passado está construído ali) ou o plano que mostra a cozinha do apartamento do homem (todo um estado presente está resolvido ali). Não há necessidade que mais nada seja dito para que entendamos o lugar onde os personagens se encontram em suas vidas (ela que segue adiante, ele que não se move), e de onde eles vieram até ali (a intimidade partilhada pela casa dividida, que agora se quebra). São arquétipos, sem dúvida, e Bandeira sabe disso. Parece ter aprendido com alguns dos mestres do cinema narrativo (e de novo Eastwood vem à cabeça) que para construir um mundo completo, uma vida na duração dos filmes, o diretor precisa saber contar inteligentemente com tudo que já foi feito em imagens antes dele, e também priorizar aquilo com que vale a pena perder tempo em sua narrativa para seu melhor efeito, e aquilo que pode (e deve) ser simplificado porque não está no cerne da questão.

E o que está no cerne de Tchau e Benção certamente não é a complexidade psicológica de seus personagens. Esta não tem a menor importância neste que é de fato um mundo em preto e branco: são apenas e tão somente um homem e uma mulher que se separam – um pé e uma bunda, para sermos mais exatos. O que importa para Bandeira é falar do fim de uma relação como uma morte, como um filme de terror. E é a isso então que ele se dedica ao longo de seu filme, com uma precisão de construção de quadros, cortes, ritmo e jogo entre imagem e som que só pode vir de alguém que possua com o cinema de gêneros uma relação não só de profunda admiração, mas também de muitas e muitas horas de degustação. Falo aqui de efeitos de linguagem, plenamente dominados, que constroem ao mesmo tempo narrativa, sentimento e espaço para a abstração do espectador, como o brilhante plano e contraplano (ao lado) que se irmana ao ponto de vista do personagem masculino ao mesmo tempo em que cria uma imagem que é mistura de real, sonho, lembrança, desejo, projeção. Assim como poderíamos falar da tensão de uma montagem paralela, precisamente griffithiana (de novo, algo que dá pleno sentido ao preto e branco, neste que talvez seja o mais ruidoso dos filmes silenciosos já feitos); do choque vontrierístico da queda no banheiro (primor de plano de efeito máximo); do kubrickiano uso da locação do longo corredor externo ao apartamento; ou da hitchcockiana colocação em cena e utilização de objetos para contar a história (o telefone, a caixa, a chave). São nomes citados aqui não como listas de referências (ou cópias), mas apenas para constatar que Tchau e Benção bebe, se farta e existe no cinema.

Sim, porque não restam dúvidas Tchau e Benção é um filme de cinema, pelo cinema e para o cinema. Não propõe que acreditemos que aquelas pessoas existiam na “vida real” e foram capturadas de repente por câmeras que se encarnaram nos espaços, muito pelo contrário: deixa bem claro que aquele universo foi construído, detalhe a detalhe, para que a câmera o capturasse, nos causando cada o efeito desejado (algo deixado claro também pelo extraordinário uso das canções que ao mesmo tempo constroem um imaginário para o personagem que as escuta, e comentam a narrativa). Daniel Bandeira assume no filme uma postura rara no cinema brasileiro (e aí não importa se de curta ou longa-metragem): a do cineasta como mestre de marionetes, manipulador assumido de um mundo. Isso fica claro de maneira definitiva com o último plano do personagem masculino, cuja ação e posição de câmera são as únicas que podem fazer deste ato de crueldade extrema (tão mais porque inconsciente de todos os seus efeitos) um fecho plenamente coerente para o filme todo. Esta manipulação assumida é, talvez paradoxalmente para alguns, a razão para a extrema verdade que o filme cria, que não é a da banal verossimilhança, mas a de um mundo de ficção plenamente realizado como tal, no qual o realizador é o primeiro de todos a acreditar piamente. E quando ele assim o faz, e professa sua fé com tamanho domínio da sua linguagem, é difícil não nos tornarmos todos fiéis da igreja da ficção cinematográfica por dez minutos. Amém.

Março de 2010

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