Não se Preocupe, Nada Vai Dar Certo
de Hugo Carvana(Brasil, 2011)
por Raul Arthuso
Fora
da ordem
Se o saudosismo do cinema de Hugo Carvana já é marcante
em Apolônio Brasil - Campeão da Alegria,
em A Casa da Mãe Joana e neste Não
se Preocupe, Nada Vai Dar Certo, trata-se de um saudosismo
de outra ordem (ao menos se comparado ao Super 8,
de J.J. Abrams, por exemplo, onde os elementos de cenografia de
época adentram a narrativa para remeter a um cinema do
passado com o qual o filme almeja se filiar). Em Carvana, são
os valores, ou melhor, um modo de vida que se deseja resgatar
através do cinema.
Nesse
sentido é interessante notar que Não se Preocupe...
se passa no presente e que seu fio narrativo parta de um número
de stand-up comedy - fenômeno de sucesso relativamente
recente no humor brasileiro - do jovem Lalau Velasco (Gregório
Duvivier), um ator tentando estabelecer-se na profissão,
sobre as aventuras de seu pai Ramon Velasco (Tarcísio Meira),
um
ator que busca voltar ao sucesso dos palcos. Há um conflito
de gerações e é desse (des)encontro de personagens
de idades diferentes que surge o que há de mais saboroso
no filme de Carvana, pois aí se estabelece o choque entre
dois pontos de vista e modos de encarar o mundo claros, divergentes
e estranhamente fora do padrão. Lalau, o mais jovem, quer
a ordem: em sua primeira cena, ele está com a mulher numa
casa de praia na calmaria, longe da confusão e agitação
do contato social, imagem geralmente identificada com um sonho
de aposentadoria e fim de vida. Seu pai, por outro lado, surge
na tela organizando uma rinha de galos, fugindo da polícia
e forçando seu filho a fugir com ele, subvertendo a ordem
como um jovem que quer, antes de mais nada, sobreviver na loucura
do mundo. Essa inversão revela o verdadeiro elogio saudosista
do filme: da malandragem como sobrevivência, que Carvana
tenta resgatar do tempo em que entrou no cinema e, principalmente,
do início de sua carreira como diretor (o emblemático
Vai Trabalhar Vagabundo).
Carvana
parece distinguir dois tipos de malandros (o que ressoa um pouco
a música de Chico Buarque, Homenagem ao Malandro):
a "malandragem amadora", que o faz pela sobrevivência
num mundo opressor; e a "malandragem profissional",
que envolve altas esferas do poder e do dinheiro, lidando com
a ganância e a corrupção. Isto se materializa
no recorrente ato do disfarce que perpassa o filme. Enquanto Flora
(Flávia Alessandra) e Rodolfo (Herson Capri) forjam o tempo
inteiro um personagem para esconder o que de fato são,
Lalau, Ramon e o personagem de Carvana usam o disfarce como extensão
do que são, já que o que são não é
suficiente para a ordem do mundo. Por isso mesmo, o disfarce é
o motor das cenas mais engraçadas do filme, como o encontro
entre Lalau e Ramon na festa de Carol Gomide (Ângela Vieira)
quando os dois estão travestidos de personagens estrangeiros
em visita ao Rio e tentam atingir um ao outro sem revelar-se para
os convidados; e a sessão religiosa do Frei Buscescu, quando
Carvana e Meira enganam ricaças para arrancar uns trocados.
Por
outro lado, Não se Preocupe... padece de um grave
problema: seus momentos engraçados são irregulares.
Se toda a construção da narrativa envolvendo um
golpe financeiro e político é bem construída
no início, isso sacrifica o humor, que demora para enganchar,
algo que se repete na parte final quando Ramon está resolvendo
o crime para salvar seu filho. Fica a impressão de que
em muitos momentos o filme simplesmente não é engraçado
- algo fatal em uma comédia. Porém,
como desgostar de um filme que elogia uma alegre malandragem como
forma de subverter as contingências do mundo capitalista,
especializado e politicamente correto de hoje? Se Não
se Preocupe... não é uma comédia plenamente
engraçada, ainda assim é um filme único,
sem medo de arriscar-se na vulgaridade (o nome "frei Buscescu"
deixa isso claro) para defender a subversão como alegria
de viver. Com isso em vista, não parece leviano nem que
o personagem de Hugo Carvana seja apresentado como um mestre da
arte que mora no Retiro dos Artistas (uma espécie de asilo
no Rio de Janeiro para artistas que não encontram mais
meios de subsistência) e não tem uma ereção
há tempos (associação clara da vontade de
vida com o exercício da malandragem própria da profissão
do ator); nem que o final, um elogio ao Carvana diretor, deixe
uma impressão fúnebre, quase como se ele tivesse
morrido. Não, Carvana não morreu. Mas seu cinema
está fora da ordem.
Setembro de 2011
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