pariscópio
Novas Bases para a Personalidade
por Cezar Migliorin

"Você gostaria de participar de uma experiência artística?”

Assim começa o trabalho que Ricardo Basbaum leva à Documenta 12, em Kassel, a mais importante exposição de arte contemporânea da Alemanha e uma das mais importantes do mundo. Se a pessoa aceitar a proposta do artista, ela deve ficar um mês com um objeto inventado por Basbaum, utilizá-lo como quiser, ser responsável por seus atos e documentar essa utilização. O projeto acontece desde 1994, parte de um projeto maior – NBP (Novas Bases para a Personalidade) – e encontra diversos desdobramentos. Em Kassel, por exemplo, ele é apresentado como uma instalação que disponibiliza para o público o work in progress - trabalho não finalizado, em processo.

Em Kassel, Basbaum construiu uma arquitetura escultural (definição do artista) em que há partes de toda a teia que compõe o dispositivo relacional inventado por ele. São oito monitores onde vemos vídeos e fotografias (1045) feitas por pessoas e grupos que participaram da experiência, dois monitores ligados ao site Você quer participar de uma experiência artística, no qual temos acesso às declarações dos participantes e do artista e um grande banco de dados sobre o projeto e, ainda, dois monitores divididos em quatro imagens advindas de câmeras de segurança colocadas na própria instalação: o público pode também se ver entre as imagens.

Operando dentro de um regime contemporâneo da imagem em que cada espectador é uma célula única de produção, tendendo para um esfacelamento das distinções entre produtor e receptor, doméstico e industrial, público e privado, as diversas fotos e vídeos que vemos são imagens ordinárias que perdem a banalidade porque são impregnadas por um desejo de encontro entre artista, objeto, participante e espectador. O projeto de Basbaum poderia facilmente tornar-se uma busca das relações extraordinárias e espetaculares com o objeto, porém não é isso que acontece. Ao se distanciar do exótico e único, é a própria vida ordinária, que leva o objeto para a praia ou o transforma em isopor para gelar a cerveja, que ganha uma dimensão poética. Com o objeto, a banalidade é atravessada por uma escritura, por uma montagem entre os elementos que se relacionam no dispositivo – participante, praia, mar, areia, sol, água, flor, globo, bola, máscara, vídeo, artista.

Dispositivo aqui entendido como a construção de um espaço em que existe um enfrentamento, um encontro entre heterogêneos. Não somente um acordo entre as diferentes partes que o compõem, mas uma presença de um desacordo, de rejeições e desarmonias, trazendo para o projeto um caráter propriamente político. NBP é um dispositivo que operam com múltiplos indivíduos, máquinas e instituições e é esta relação que possibilita a produção de imagens – que são, elas próprias, parte do dispositivo, como fica claro no modo como a instalação é apresentada.

Há uma saborosa heterogeneidade de imagens que se unificam no objeto, não para formar um todo consistente, criar uma narrativa ou um sistema. O objeto que Basbaum empresta às pessoas se constitui como uma força que impossibilita que as imagens adentrem uma lógica aleatória ou esquizofrênica onde nada se liga a nada – sem deixar, entretanto, de fazer aparecer uma diversidade caótica. O objeto está a cada vez em lugares diferentes, participando de ações diferentes e sendo parte da invenção de gestos singulares. Esta reincidência do objeto faz com que ele acabe por desaparecer das imagens. Apesar de estar ali, o que vemos é o entorno – pessoas, grupos, sons, outros objetos – que se contorcem, batem, equilibram, falam e ouvem em relação, harmônica ou tensa, com o objeto e com o dispositivo como um todo.

Basbaum modula sua presença entre momentos onde parece perder o controle dos desdobramentos de sua experiência e outros em que se faz mais presente, como na feliz invenção do objeto. Ao entregá-lo para o participante ou ao fazer essa instalação que reúne objeto, participante e público, o artista está construindo uma cena, um espaço onde se apresenta o que pode ser dito e visto. Mas esta decisão estética não pertence ao artista somente, é uma operação compartilhada em que o artista é parte do dispositivo, parte da cena que está sempre se criando.

Em um dos vídeos apresentados na instalação na Documenta vemos um grupo destruindo o objeto. Uma ação violenta que materializa este distanciamento do artista em relação aos desdobramentos pré-concebidos para o projeto. A circulação do objeto e das imagens compõem assim uma obra mutante e metaestável, que encontra esses momentos de estabilidade, como na instalação da Documenta, mas sempre apontado para fora dali. Em 2003, por exemplo, o Coletivo Vaca Amarela, de Florianópolis, entra na experiência proposta por Basbaum com a fina ironia de quem percebe o destino do objeto e o doa para o Museu de Arte de Santa Catarina com o nome de “Doação do NBP”. Nesta época, por questões financeiras, havia um único NBP em circulação, apesar de ele nunca ter sido pensado como um objeto de tiragem limitada, segundo Basbaum. Um dispositivo não é um sistema, e isso fica claro com a ação do coletivo. Ao dispositivo lhe falta a coerência interna, lhe falta as fronteiras que o separariam de outros dispositivos e instituições; o museu, a Documenta, etc.

Um dispositivo, este de Basbaum, nos permite sair da dicotomia do um e do outro, tão cara à teoria ligada ao documentário, por exemplo. Uma dicotomia que trabalha com relações de simetria como se cada lado da relação tivesse uma integridade, uma totalidade e as relações de troca, mistura e tensão se dessem de um ao outro, entre duas entidades limitadas. Neste dispositivo, não cabe uma relação entre dois que se dê de forma dialética ou como causa e efeito. A partir de um certo momento, as separações entre artista, participantes e todo o dispositivo são irrelevantes. O que não significa dizer que a tensão desaparece, que há solução do dissenso.

A relação política e estética que se dá entre indivíduos e grupos nas NBP acontece na imanência do dispositivo e não como adequação de um indivíduo à uma forma que lhe antecede. Se o indivíduo é algo que sempre aparece em um processo de individuação, distante sempre de uma realidade substancial, o trabalho de Basbaum intensifica essa percepção inventado um dispositivo que materializa e traz uma presença estética para o próprio processo de individuação. Em outras palavras, as imagens que vemos no site ou em Kassel, aparecem como fugidios modos de vermos os participantes experimentando seus corpos, imaginações, inteligências. Um dos participantes – Jorge Menna Barreto –. por exemplo, decide enterrar o objeto, tirando-o de circulação e manifestando o desejo de não ter a experiência: uma das experiências mais singulares do mundo contemporâneo.

O objeto passa a fazer parte da vida como um shifter de subjetividade, como escreveu Félix Guatarri, um elemento que bifurca a cena em que a vida se dá, um acontecimento que não obriga o gesto ou a fala, mas que não permite nem o mesmo gesto, nem a mesma fala. O objeto é então um intensificador de processos de individuação. As imagens que aparecem nos vídeos e fotos documentam esses deslocamentos, do objeto e do participante e a relação dinâmica que se dá entre eles. A entrada do objeto na cena do participante acaba por ser delicadamente reveladora do indivíduo ou grupo que o utiliza, como em um documentário; sem perguntas, sem off e sem um mundo que se entregue in-natura; tudo passa pelo dispositivo que é sempre um agenciamento coletivo, desindividuado, transubjetivo, como escreveu Brian Holmes sobre o trabalho de Basbaum, nem social nem individual. O que se vê é o indivíduo deixando um lugar estável, identitário, para jogar com gestos e modos possíveis de lidar com essa Nova Base da Personalidade.

Entretanto, há uma ironia nesse movimento que é parte do diálogo que Basbaum estabelece com artistas como Ligia Clark e Helio Oiticica. A ironia não é propriamente com os artistas, mas com a história e com o tempo. Se a experiência da arte passa para todos eles por uma interação sensorial e afetiva com o objeto, no caso de Basbaum estamos distantes de uma reinvidicação utópica libertária. Entretanto, ele escolhe um nome e um processo que não deixa de fazer uma aposta na vida e na produção subjetiva como um operação estética e ética. Há nesse sentido uma inadequação entre a arte, tão incerta, falha e ambígua e a idéia de criar novas bases para a personalidade através de uma experiência sem garantias. Há um humor mesmo nesta escolha do nome do objeto – Novas Bases para a Personalidade. Podemos imaginar que a arte está sempre dando essas novas bases da personalidade, inventando objetos em que o processo de subjetivação seja uma constante, interminável – esta é a noção mesmo de resistência ao totalitarismo e ao fascismo exposta por Guatarri. Mas, ao escolher o efeito como nome do objeto, Basbaum está, pelo menos hoje, flertando uma certa crença excessiva na arte.

Se desconsiderarmos o humor presente no projeto de Ricardo Basbaum, ele ganha uma dimensão utópica e perde sua força tanto como obra que efetivamente mobiliza o público e o participante de maneira estética e ética, assim como se perde o comentário generoso e irônico em relação às artes em geral. A força deste trabalho está, por um lado, no modo como ele se coloca na fronteira entre um ideal utópico fundado no encontro e no acontecimento que se desdobra na invenção subjetiva como modo de resistência aos poderes produtores de identidades funcionalizáveis para o capitalismo, e, por outro, no humor de quem se percebe caminhando em campo minado. Com auto-ironia o artista se vê na fronteira do próprio poder ligado ao capitalismo contemporâneo que, tendo incorporado a crítica artística (Boltanski) por mais independência, autenticidade e inovação nas relações de trabalho, criação e dehierarquização fundadas na autonomia do trabalhador e do consumidor; se alimenta das invenção subjetivas. Trata-se de uma passagem no mundo do trabalho do savoir-faire (saber fazer) para o savoir-être (saber ser) (Boltanski, de novo). No encontro com o seu oposto – personalidades divergentes, criações subjetivas, modos singulares do ser – as forças do capitalismo encontram uma adaptabilidade superior. A adaptação as torna mais forte.

A dimensão utópica de uma arte móvel, de uma arte sem barreiras geográficas ou fronteiras, é revista pela ironia que existe no projeto. É ainda a partir dessa ironia presente no título do projeto e na forma dos NBP que Basbaum marca um distanciamento crítico em relação à possibilidade emancipadora da criação de ligações sociais. O conexismo, a criação de redes recebe um impulso e um piscar d'olhos. O projeto consegue se descolar do puro elogio à formação de uma teia, como se a sua criação tivesse sempre desdobramentos ótimos e como se a crescente mobilidade não estivesse ligada à fixidez e imobilidade de outros (Boltanski).

Há ainda humor na forma do objeto inventado por Basbaum. Trata-se um "trambolho". Imagino que a cada vez que o artista mostra seu objeto ao participante a apresentação deve ser acompanhada de um sorriso. Estamos distantes de objetos maleáveis como os Bichos de Ligya Clark, da leveza e coloridos dos Parangolés de Oiticica. Trata de um objeto industrial, grande, rígido, que não pode ser escondido em um armário ou esquecido em um canto qualquer da casa e que se aproxima de um objeto duchampiano por dificultar qualquer julgamento de gosto ou de simples contemplação estética. A mobilidade do objeto e a experiência de seu convívio não são separadas de um desconforto com sua presença.

O trabalho de Basbaum leva ao limite a arte contextual tal como descreve Paul Ardenne para, ao mesmo tempo, pela ironia, se distanciar dela. O elogio de Ardenne à arte contextual se baseia em uma arte que se coloca "sob o risco do real", para usar a expressão de Jean Louis Commoli. Seu contraponto é de uma arte estética fundada em critérios acadêmicos. Para Ardenne, colocar-se em contexto é estabelecer conexões que recusam o distanciamento do artista da realidade e, por isso, o elogio que o pesquisador faz à arte contextual e à contingência em que ela opera. Esse corpo-a-corpo com o real é seguido da necessidade de experimentar – a si a ao mundo -, conectar, se colocar em relação com o outro, procurar co-implicações, confrontações com o espaço coletivo, ação no lugar da contemplação, expansão fundada na experiência – sempre mais, sempre outro - e, por fim, uma posição, menos estética que política. A política, para Ardenne, passa então pela experiência. A experiência é o que permite alargar o saber, os gestos, as atitudes, os conhecimentos, dinamizar as criações e as conexões possibilitando a vivência de fenômenos inéditos e melhores formas de habitar o mundo.

Se voltarmos ao trabalho de Basbaum, o desdobramento das Novas Bases para a Personalidade se encaixam com perfeição nesta aposta contextual de Ardenne. Não por acaso, e com razão, Ardenne comenta os Bichos de Ligya Clark como momento "chave" da prática contextual em que o artista "pode colocar óleo nas engrenagens da vida coletiva e, assim fazendo, se tornar um multiplicador de democracia". Entretanto, o projeto de Basbaum explicita o dispositivo ao chamá-lo de Você quer participar de uma experiência artística e ao nomear o objeto não pela forma, como Ligya Clark, mas pelo resultado; Novas Bases para a Personalidade. Entre o nome do projeto e o nome do objeto existe o espectador que transita entre a relação experimental com o objeto, sua vida e seu meio e o ponto possível de chegada: bases para uma nova personalidade.

Um ponto de chegada, evidentemente irônico. Colocar o participante entre a experiência e as novas bases parece ser ao mesmo tempo a aposta na experiência e a percepção de como ela pode ser capturada, funcionalizada. Não há devir utópico possível baseado na experiência e é essa dimensão ambivalente da arte em contexto que escapa a Ardenne e não a Basbaum. Penso esse trabalho de Basbaum como parte dessa encruzilhada, desse lugar tenso em que a arte atravessada pela vida resiste e não pára de tensionar e se esquivar das freqüentes capturadas feitas pelos poderes contemporâneos.

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta