ensaios
A fixação em processo
Ne Change Rien e a plasticidade das mudanças
por Fábio Andrade

Ne Change RienÀ época da exibição de Ne Change Rien em Cannes, Eduardo Valente escreveu aqui na Cinética que o filme seria sobre duas coisas essenciais ao cinema: a luz e o som. Faço aqui uma ressalva que não é exatamente uma discordância, mas talvez um passo atrás: Ne Change Rien é, sem dúvidas, um filme feito sobre/para/por a luz, e, em se tratando de um documentário de música, é inevitável que o som seja algo primordial ao filme; mas o som é aqui um desdobramento de um valor anterior e constitutivo que me parece, neste caso, ainda mais essencial: o movimento. Pois o som é a materialização da duração na qual são inscritos os movimentos dos personagens e das próprias canções. A intenção é menos a de um registro de uma canção que se forma (o que torna, em si, inapropriada qualquer aproximação com o documentário: os filmes de Costa não se interessam em registrar ou documentar coisa alguma mais do que qualquer outra arte já inevitavelmente registra e documenta), ou de um processo criativo, e mais de delimitar um meio (o som) e um tempo (a canção) para que um movimento plástico possa acontecer para a câmera.

A partir dessa combinação luz+movimento, surge o que o filme tem como questão visual: a constante modulação de uma mesma vista dentro de um recorte de luz. Ne Change Rien realiza um velho sonho cinematográfico de colocar esculturas em movimento, de usar o cinema para solidificar determinadas figuras monumentais (aqui, Jeanne Balibar; em Juventude em Marcha, Ventura) mas, ao contrário dos retratos que abrem Casa de Lava - e que congelam os rostos dentro do tempo do plano, aplicando um referencial pictórico ao cinema - Ne Change Rien percebe a possibilidade de esculpir esse movimento, de solidificar o que é fluido e está em constante transformação sem exterminar, com isso, com a fluidez e a transformação. É o cinema que invade a pintura e a escultura, pois Costa se apropria de um certo referencial imagético (o rosto de Jeanne Balibar é tratado igualmente como uma composição de Caravaggio ou uma peça de Rodin), mas reverte a decomposição quadro-a-quadro de Marey no contínuo do vídeo, por um movimento que só pode ser registrado em si. Costa não filma a fixidez pictórica, nem seu processo de composição: filma modelos vivos e em movimento como se eles fossem esculturas ou pinturas, como se o cinema pudesse entrar na essência inevitável dessas artes e surpreendê-las, conferindo-as capacidades que estão fora de seu alcance.

Ne Change RienA música - algo que até então era pontual como presença na obra de Pedro Costa, mas que amarrava como idéia todos os seus filmes - é a chave que sugere essa possibilidade: a modulação é particularidade do tema do filme (a música), e ela leva o diretor a criar um equivalente visual rico e novo para expressá-lo. O contraste extremo do preto e branco feito por Pedro Costa parte de uma referência essencialmente plástica (como todos os seus filmes, inclusive), para chegar ao que o cinema tem de específico em relação à pintura: a possibilidade de se mover dentro dessa mesma luz, e de transformar radicalmente o sentido com cada pequeno desvio. A relação de claro-escuro é também a mudança dos tons maiores pros menores das canções, do plano pro contraplano, da doçura pro terror, do refinamento para a brutalidade. O canto de Jeanne Balibar interessa pois quando ela canta, ela se move. E a cada movimento seu particularíssimo rosto se redefine no claro-escuro, seus traços são reconfigurados, sua aparição se refaz imprevisível. Em um momento vemos uma ninfa, mas no segundo seguinte ela já se transformou em monstro. Tudo isso convive na duração dos planos e surge em uma simples relação de luz e sombra e na determinação que mantém os planos quase sempre fixos.

A intenção em filmar um processo é menos de uma investigação do que de um pragmatismo de performance: se há, em Ne Change Rien, a vontade de contrastar o imutável do cinema com o vir-a-ser constante da música, nos ensaios essa performance é ainda mais errática, e sua fluidez mais extrema - algo ainda mais claro nos planos em que a banda ensaia frente uma tela branca, que faz lembrar a tela do próprio cinema. Assim como em Onde Jaz o seu Sorriso?, a vontade é menos de investigar o processo criativo e mais de provocar um choque entre esses dois momentos da obra de arte - uma obra acabada (os filmes de Pedro Costa como os vemos) com outras ainda em processo de definição. Quando vemos Danièlle Huillet travando um plano na moviola, nunca teremos o lampejo de buscar as mesmas coisas que ela busca naqueles fotogramas (o tal sorriso escondido que faz os grandes artistas serem especiais, e seus processos resistirem a todo tipo de desconstrução ou esquartejamento); o que teremos é a dissonância de algo móvel, em decomposição (as construções de No Quarto da Vanda; os corpos em Ossos) ou em composição (a montagem de Sicília! ou os ensaios de Jeanne Balibar) dentro de algo já fixo e imutável, expresso não só pelo filme, mas também por seu próprio título - ruído que é essencial a toda a obra de Pedro Costa. 

Ne Change Rien
Em Ne Change Rien, o que o diretor faz é aproveitar situações que permitam que essa fluidez de humores aflore. Se vemos um plano longuíssimo - e talvez o mais belo de todo filme - de Balibar fazendo uma aula de canto lírico, é justamente por as interrupções da instrutora perturbarem essa duração e provocarem mudanças - de voz, de rosto, de canto - que poderão ser apreendidas visual e sonoramente. A dificuldade em acertar o tempo de uma música não surge como atestado de processo ou de competência, mas sim como o dispositivo que leva a cena do mais climático à ruptura mais abrupta, da doçura à irritação. O cinema de Pedro Costa é todo feito de binômios antagônicos (o dentro e o fora, a riqueza visual extraída de uma realidade paupérrima, a teatralização do real, etc), e aqui temos um dos mais constantes: o confronto entre a duração do plano e a violência dos cortes. Em Ne Change Rien, o corte não provem do cinema: ele é interno à cena, promovido por cada mudança brusca de humor e direcionamento, e os planos longos vão captá-los em toda sua integridade. A Pedro Costa interessa filmar não exatamente a intimidade entre câmera e personagem (embora ela exista), mas sim esse processo de atração e repulsa entre quem se oferece ao outro para no momento seguinte - por força de vontade ou contingência - novamente se retrair. Ne Change Rien é uma belíssima sucessão de coitos interrompidos.

Dezembro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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