in loco - 4o cineop
O espaço perdido do confronto
por Rodrigo de Oliveira

As cine-reportagens de João Batista de Andrade e Nem Marcha Nem Chouta, de Helvécio Marins Jr

Assistir à coleção de seis curtas-metragens (em verdade, cine-reportagens) produzidos por João Batista de Andrade entre 1972 e 1973 é um inevitável exercício de finitude. Primeiro por um quesito que diz respeito exclusivamente ao conteúdo, à margem da forma: como num documento histórico, as pessoas entrevistadas pelo cineasta nessas reportagens de rua falam a respeito de um Brasil que não existe mais. Sejam elas retirantes vivendo debaixo de um viaduto, catadores de lixo ou passageiros esperando por ônibus precários e sempre lotados, há algo na maneira como falam, como usam a língua, como se portam diante da câmera e reagem à presença de um entrevistador que valem como prova material de uma mudança comportamental, de caráter e de costumes que nenhum livro ou anedotário poderia dar conta. Não é exatamente uma questão de evolução ou involução, mas propriamente uma maneira de se colocar no mundo que já não é a mesma – porque o mundo em volta é outro, e exige novas posturas, novas personalidades.

No que diz respeito especificamente à matéria cinematográfica desses seis filminhos, vale o mesmo: a impressão de que esse espaço onde se dá o cinema (grosseiramente falando, tudo aquilo que envolve o espaço entre a câmera e o personagem que se põe à frente dela, e entre a câmera e o cineasta ali atrás) se transformou tão radicalmente que acabou reformando também os papéis de quem se arrisca a habitá-lo. Em Migrantes, o mais impressionante deles, o estilo já se anuncia influenciado pelo cinema direto e pela mobilidade possível com a disseminação do suporte 16mm e do gravador portátil. O tom invariavelmente é de revelação, seja quando a denúncia de comerciantes sobre vagabundos que estariam ocupando um viaduto é confirmada de maneira jocosamente antifascista com um “enfim os marginais!”, ou quando uma situação improvisada no decorrer da reportagem é coroada com um letreiro onde lê-se “vejam a esclarecedora conversa provocada pelo repórter”.

É exatamente esta figura do repórter-cineasta como provocador, como o promotor da cena em moldes quase teatrais (lembrando a figura dos apresentadores no teatro de boulevard contemporâneo ao nascimento do cinema) que parece tão sem-lugar para os olhos de hoje. A tal “esclarecedora” conversa se dá quando João Batista de Andrade convoca um paulistano comum que passava pelo viaduto para um confronto cara-a-cara com o migrante nordestino que vive ali com sua família, onde cada parte tenta defender seu ponto de vista ao mesmo tempo que rebate o do outro com uma lucidez impressionante. O que há de diferente ali não é exatamente o corpo de João Batista a dividir espaço com seus personagens (ainda que haja uma tendência fortíssima no documentário brasileiro contemporâneo em apagar os vestígios físicos da presença do diretor em nome de uma exacerbação da presença intelectual e muda, temos alguém como Eduardo Coutinho, Silvio Da-Rin ou Paula Gaitán que ainda se dispõem a participar da cena que eles mesmos produzem). O que há de estranho mesmo é a presença do microfone, sempre em punho, sempre apontando para a boca de alguém de maneira muito incisiva.

É claro que este trabalho de utilidade pública foi plenamente assumido pela televisão nos últimos 30 anos, e o que se passa nos telejornais locais ou num Globo Comunidade qualquer não é muito distante disso: uma situação calamitosa, em geral descoberta através de uma denúncia daqueles que sofrem com ela, que gera uma reportagem alarmista, cheia de imagens do descaso e de cobranças abertas ao poder público. E claro que a figura do repórter como este sujeito-em-ação, sempre se movimentando pelo meio do caos que documentará, sempre com o uniforme do terno-e-microfone-com-logomarca, também já foi devidamente assimilada, mas é estranho que essa migração de um meio para outro tenha significado o desaparecimento completo do instrumento de captação na cena de cinema e sua acomodação no espaço da técnica pura e simples, nunca mais manejada pelo cineasta em pessoa.

Em Pedreira, reportagem mais tradicional em sua narração, na exibição de gráficos explicativos e mesmo na presença de um apresentador na bancada do telejornal, vemos a dimensão completa desta transformação. Para registrar de perto os riscos que correm os trabalhadores de uma pedreira, o cinegrafista acompanha o acendimento dos pavios de dinamite num plano-seqüência e, obedecendo ao sinal sonoro emitido como alerta para a explosão, começa a correr pelo terreno irregular junto com os operários – e ali todos estão na iminência de um grave acidente, inclusive a câmera, que se perde numa trepidação nauseante. A natureza das vontades é claramente diferente: de um lado pessoas tentando expor um problema que lhes põe diariamente sob risco de morte, e do outro uma equipe de reportagem que quer exatamente isso, testemunhar o risco. Um plano geral distanciado seria tão efetivo quanto o plano-seqüência próximo (e até mais graficamente informativo, uma vez que a imagem não sofreria nenhum abalo), mas a câmera parece só conseguir testemunhar algo se também estiver sob ameaça igual.

É aí que microfone e câmera se posicionam enquanto agentes da cena: sobre a máquina ainda se guardava alguma confiança – ou de que ela estaria sempre pronta a registrar o que quer que fosse dito por conta de sua presença física e irremediável no quadro, ou porque também se submetia ao mesmo confronto vivido regularmente naquele meio. Existem dissensões (alguns dos passageiros indignados de Ônibus se recusam a falar, mas nunca saem do raio de registro da lente) ou puro deslumbre (ao exibir o trabalho na construção da casa própria em Domingo em Construção, ou de simplesmente “ficar famoso” ao aparecer, como em Buraco da Comadre), mas há ainda um acordo tácito entre a cena e o aparato cinematográfico – pacto de honestidade, de respeito mútuo, ou apenas de inocência na máquina inequívoca que só registra “as verdades”.

Tudo aquilo que o contemporâneo Nem Marcha Nem Chouta exibe é como esta relação agora é gerida primordialmente pela desconfiança. Trata-se de uma criança numa cidade pequena da Bahia, e crianças são naturalmente desconfiadas de tudo o que aponta para elas sem anunciar o que quer em troca. Também é possível pensar que este menino tentando fugir do olhar da câmera colocada do outro lado da rua reage instintivamente a essa perseguição, e que isso se daria em qualquer época. Mas interessa menos a postura de parte a parte e mais o espaço criado entre elas. Um espaço físico, dado pela rua, num lado da calçada Helvécio Marins Jr. e a câmera, do outro um menino numa barraca de feira onde se vêem os restos de um boi abatido, e um espaço sensível, que dá conta da impossibilidade da aproximação, da inviabilidade da conversa, da voz, da textura da pela que não aquela alcançada por um zoom (inexistente no filme, diga-se). Os olhos do menino estão sempre direcionados à câmera, mas ela mesma não comanda a ação: ela apenas reage, quem controla este arremedo de mise-en-scène é o menino. Por mais que as moscas rondando a carne e o crânio ensangüentado do boi eventualmente chamem a atenção do filme, isto só se dá quando o menino finalmente consegue se esconder (e nem toma muito tempo de cena: o filme acaba logo depois disso). Ainda há um tipo de documentário no Brasil que depende da interação de olhares, que não se satisfaz com objetos – nem com a auto-importância dos objetos-cinema – e por mais que esse abismo esteja aberto e declarado, ele ainda é um espaço habitável. A desconfiança pode impedir certas interações, a proximidade pode ser utópica, mas é possível fazer belos filmes em torno disso.

Julho de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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