in loco - cobertura dos festivais

A Noite que Nos Domina (Night Catches Us),
de Tanya Hamilton (EUA, 2010)

por Eduardo Valente

Bandeiras dos nossos pais

Desde os seus créditos iniciais, A Noite que Nos Domina deixa claro o escopo da sua empreitada, partindo na trilha de um “glória, aleluia” inicial para uma citação da Declaração de Independência norte-americana, e finalmente chegando a um discurso do então candidato presidencial Jimmy Carter, em 1976. O que Tanya Hamilton nos diz com essa passagem de sons (que é só um dos vários usos firmes da trilha sonora que o filme faz – especialmente no trabalho de música entre canções da época e música original de The Roots), que se dá sobre belos desenhos estilizados em cima de imagens de imprensa e cartazes da época, é que, por mais que sua história seja de fato sobre uma casa e três personagens que habitam dentro dela (e alguns que a circundam), ela precisa ser inserida em algo maior para atingir seu verdadeiro potencial (algo que é tornado quase literal pelo cartaz do filme, como podemos ver acima).

Sim, porque o que Hamilton pretende, mais do que qualquer outra coisa, é reabrir uma página da história americana muito pouco repercutida hoje, neste momento em que um negro ocupa pela primeira vez a Casa Branca: a do movimento dos Panteras Negras. Ao abri-la, ao mesmo tempo em que não interesse tanto a ela a história macro (embora mantê-la por perto seja essencial, e daí o uso constante de imagens de arquivo ao longo do filme), como se pode erroneamente inferir desta mixagem inicial de sons, essa ida ao particular se dará com o peso e a força de um balanço. Na soma dos personagens adultos principais (Marcus e Patrícia, mas também Jimmy, Dwayne, o policial, o marido), Hamilton parece propor uma equação das posturas possíveis então, do engajamento total à repressão, passando pelo distanciamento, tomando como postura principal uma óbvia defesa de um posicionamento, sem com isso deixar de perceber as necessárias nuances e complexidades de todas as outras figuras (de fato é bem impressionante a atenção da diretora aos detalhes com que constrói e reposiciona nossas simpatias a cada um deles).

Este formato em painel pode até parecer um tanto pedagógico, mas esta postura se explica melhor quando finalmente entendemos quem representa o verdadeiro ponto de vista do filme: Iris, a menina de “quase dez anos” que precisa processar uma quantidade bastante impressionante de imagens e impressões sobre um mundo particulamente complexo que se desenrola em volta dela. A narrativa de A Noite que Nos Domina revela-se aos poucos o processo de educação do olhar dela, ainda que este seja necessariamente não-conclusivo, e não concluído (donde o final “em aberto” – cujo último plano remete diretamente a Rastros de Ódio). Por isso, mesmo seu formato bastante tradicional (principalmente na decupagem), eventualmente quase novelesco, assim o é de forma absolutamente consciente de sua opção, pois “exposição” parece termo importantíssimo para tudo que o filme ambiciona – o que só amplifica sua consciência do papel que pretende cumprir hoje, nos EUA de Obama.

Não deve ser por acaso, aliás, que além desta lembrança tardia e pontual de Ford nos peguemos pensando em Eastwood aqui e ali: sem, de forma alguma pretender imaginar que haja neste primeiro filme de Hamilton a densidade da obra deste, não dá para ignorar seu entendimento de uma determinada mitologia (principalmente visual), nem sua capacidade de ser tomada pelo poder da ficção audiovisual, e desta frente a História. Também é relevante pensarmos em Eastwood ao constatarmos como a morte ronda A Noite que Nos Domina o tempo todo. De fato, este é um filme duplamente assombrado: no interior da trama, pelo assassinato e o fantasma de um personagem central (e, inclusive, pode-se dizer sem muito exagero que é um filme de “casa mal assombrada”); mas, principalmente, ele representa um olhar de mundo que tem a certeza de que, para seguir em frente, é preciso ainda lidar com algumas lembranças (e fantasmas) do passado, que se encontram muito presentes. Que tudo isso esteja em jogo de maneira tão fluida neste filme de estréia é um tremendo elogio a Tanya Hamilton.

Outubro de 2010

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