sessão cinética
Ninotchka
(idem), de Ernst Lubitsch (EUA, 1939) por Fábio
Andrade Um
toque de leveza
Diz o mito que Ninotchka
nasceu de uma idéia intransitiva: Garbo ri! O bordão talvez ironizasse
o anterior "Garbo fala", usado na publicidade de Anna Christie
– filme de 1930, dirigido por Clarence Brown, que marcava a passagem da atriz
do cinema silencioso para o falado – e aproveitava que, até Ninotchka,
Greta Garbo tivesse se mantido fiel ao exotismo silencioso de sua seriedade, passando
longe das comédias. A sisudez de sua Ninotchka ganha, nesse sentido, preciosos
tons metalinguísticos, como se a atriz fosse também uma guardiã do melodrama que,
assim como sua personagem, terá sua firmeza colocada à prova por tudo que ela
evitou ao longo de sua vida. Mas o slogan é ainda mais revelador por, de
maneira muito certeira, definir um traço importante do olhar de Ernst Lubitsch:
o cinema provém da ação. "Garbo ri", e daí surge um filme inteiro de
situações que derivam dessa ação primeira, e que produzirão outras séries de ações.
Essa
fidelidade à ação determina toda a construção de Ninotchka. Temos Greta
Garbo; ela ri, e isso basta. Não há um movimento de câmera injustificado, um ponto
de corte que violente o tempo dos movimentos e da fala, ou um enquadramento que
chame mais atenção por sua angulação do que por aquilo que ele enquadra. Cineastas
erigem carreiras em cima de olhares; só Lubitsch tinha um "toque". Essa
diferença é essencial pois, mais do que provocar riso ou choque, Lubistch precisa
construir situações que envolvam o espectador em uma determinada atmosfera. E
essas situações só podem gerar outras ações: se apaixonar pela vida francesa é
trocar de chapéu. Daí que a comicidade em Ninotchka não seja física – como
era em Buster Keaton, Chaplin, Tati e outros cineastas da ação – pois a atmosfera
só é alcançada se o filme, em si, aparentar ser regido pela intuição de seu próprio
organismo. Do roteiro à decupagem, o humor é a ferramenta para a leveza, mas é
à leveza que se quer chegar – e é bastante natural que em A Loja da Esquina,
seu filme seguinte, o diretor fundasse as bases da comédia romântica. O riso
estampa os rostos, mas chega até eles pelas situações e os diálogos, hoje antológicos,
escritos com admirável precisão por Charles Brackett, Walter Reisch e um então
jovem diretor e roteirista chamado Billy Wilder. Essa
defesa da leveza é especialmente preciosa – e muitas vezes um tanto subversiva
– por Ninotchka tratar de tensões latentes em um mundo pré-Guerra Mundial.
Não há interesse pela sátira política pura e simples, mas sim em trabalhar os
estereótipos de forma total e indiscriminada: um nazista é tomado por um camarada;
os franceses só sobem a torre Eiffel para se jogarem lá de cima; os capitalistas
ficam ricos acumulando perdas, e o bon vivant vira alvo de piada quando
tenta se enturmar com os operários. À sua maneira, Lubitsch e sua legião estrangeira
(ele, alemão; Garbo, sueca; Bela Lugosi, da região da Romênia; Wilder, de Viena;
etc) dão, em Ninotchka, uma resposta àquele momento histórico. Pois se
a luta de classes já havia se tornado fetiche, é o cinema que pode levá-la logo
a Paris e fazer dela uma História de amor. "Eles não podem censurar nossas
lembranças", diz um dos agentes russos, depois de retornar à pátria-mãe.
As lembranças de Ninotchka parecem ser a de que, mesmo no mais trágico
porvir, o cinema era capaz de guardar um certo ritmo, um estado de espírito, uma
experiência de alegria e de sonho que os rumos do mundo não conseguiriam apagar. Setembro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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