No, de Pablo Larraín (Chile/França/EUA, 2012)
por Victor Guimarães

Impurezas

Em um conjunto de cartelas, No anuncia seu enredo, ao mesmo tempo em que deixa bem clara sua vinculação à história recente do Chile: passados quinze anos do golpe que derrubou o governo de Salvador Allende, o general Augusto Pinochet se vê obrigado a ceder às pressões internacionais e decide convocar um plebiscito para que a população decida se ele continuará (ou não) no poder. Durante um mês, a televisão será o palco de uma intensa campanha de marketing político, que dividirá as atenções do país entre duas palavras, dois futuros possíveis. O filme acompanha essa disputa através da trajetória de René Saavedra (Gael García Bernal), um publicitário que retornara do exílio no México e é convidado a liderar a campanha do Não.

Quando decidiu ambientar seus três últimos longas em plena ditadura chilena (ainda que em Tony Manero e Post Mortem a história oficial constituísse mais um pano de fundo do que um motivo dramático central, como em No), Pablo Larraín tinha diante de si um desafio dos mais espinhosos. Nos países latino-americanos em que a memória dos anos de chumbo ainda persiste, os últimos períodos ditatoriais tendem a se tornar uma fonte quase inesgotável de narrativas. E se o êxito de público – pelo menos no caso argentino – tem sido frequente, não se pode dizer o mesmo dos logros cinematográficos de um O Segredo dos seus Olhos ou de um Infância Clandestina, para ficarmos em alguns exemplos dos últimos anos. Nos dois casos, a aproximação à traumática história recente se torna uma espécie de selo de legitimação cultural para filmes pouco inventivos, que apostam em velhas fórmulas melodramáticas e investem apenas nos prazeres mais imediatos do espectador.

Mas quando o rosto de Gael García Bernal aparece pela primeira vez, sua expressão é grave. Ele tem a seu lado um exibidor de vídeo, e se prepara para mostrar algo aos presentes na pequena sala: “o que vocês verão agora está inserido no contexto social do Chile atual”. O bordão do publicitário – que se repetirá outras duas vezes ao longo do filme, em modulações sempre distintas – é, ao mesmo tempo, um elemento do drama e uma piscadela para o espectador: tudo nos faz crer que a gravidade do tema e do olhar do personagem encontrarão seu correspondente na tela do monitor. O que acontece em seguida, no entanto, dissolve inteiramente nossas expectativas: o que vemos é um hilariante spot publicitário do refrigerante Free, com direito a todos os clichês videoclipescos do fim dos anos 1980. A um só tempo irreverente e seriamente irônico – a liberdade que se anuncia no horizonte da história chilena só pode se situar no rótulo de um novo refrigerante –, o gesto de Larraín é forte, e já afirma tudo o que falta à maioria dos “filmes históricos”: a integridade de um olhar.

Em No, veremos alguns dos ingredientes que já se anunciavam nos filmes anteriores do diretor: uma câmera devotada aos corpos, uma montagem ao mesmo tempo ágil e paciente e, principalmente, uma dramaturgia dedicada à construção de personagens multifacetados, que faz com que nossa adesão – ou nossa repulsa – a eles nunca seja plena e inconteste. René é um herói pouco convencional: se sua energia nos move durante todo o filme, ele nunca deixa de ser também um sujeito hesitante, um pouco covarde, sem a firmeza ética que se espera dos militantes (no fim das contas, o personagem nunca deixa de ser um publicitário, que divide as atenções entre o futuro do país e a nova sensação no ramo das cozinhas planejadas). Lucho (Alfredo Castro, protagonista dos outros dois filmes, em mais uma performance brilhante), a um só tempo seu sócio e principal adversário na campanha, é um antagonista por demais ambíguo, em relação ao qual nossa identificação também vacila.

Se os heróis não são plenamente amáveis, os inimigos tampouco parecem tão ameaçadores. Uma das grandes dificuldades de um cinema que busca encenar um evento como o terrorismo de Estado latino-americano – ou o Holocausto, para citar uma das obsessões narrativas mais rentáveis da indústria – consiste na maneira de representar os algozes: frequentemente, eles se tornam figuras quase demoníacas de um poder encarnado, sobre os quais nosso olhar presente só pode lançar uma espécie de ódio conformado, tão consensual quanto inofensivo. Nesse sentido, uma das grandes virtudes de No é a de traçar um desenho nuançado da ditadura de Pinochet, em que as razões da repressão readquirem o peso de argumentos – inscritos em um momento preciso da história – e não apenas a leveza dos disparates. Associada à complexidade da dramaturgia, a precisão da mise-en-scène: em um só plano (o beijo de Verónica no rosto do filho Simón, que se agarra ao corpo do pai), o filme sugere toda a teia de relações da conturbada família do protagonista. René será sempre um personagem em crise, e mesmo o triunfo político não receberá o tratamento celebratório que se esperaria da encenação.   

A escolha por acompanhar o desenrolar da campanha – e a disputa no interior do território da televisão – faz com que boa parte da matéria expressiva do filme seja constituída por arquivos da época. Essas imagens, no entanto, escapam ao tom tradicional do testemunho militante: são registros impregnados por uma expressividade própria da publicidade e da televisão dos anos 1980, em que o ridículo dos temas, dos figurinos, da montagem, adquire uma importância fundamental. Dos dois lados da disputa, há sempre algo de caricato (aos olhos contemporâneos) a contaminar as escolhas. Por mais que o investimento afetivo nessas imagens exista – a certa altura, somos tomados por uma estranha simpatia por algo que, antes, parecia demasiado bizarro –, ele nunca é total: o filme guarda sempre uma distância inevitavelmente irônica, que impede a projeção imediata. Fazer da ironia uma das chaves de um olhar sobre esses registros é, em grande medida, destituir seu caráter inviolável e sagrado, desativar a função exclusiva do testemunho de uma história gloriosa ou terrível.  Apostar na profanação é, na esteira de Giorgio Agamben, devolver essas imagens à circulação mundana, restituí-las ao uso – produtivo – dos espectadores.

Nesse sentido, talvez a escolha mais contundente de No seja a de fazer com que as imagens do filme sejam contaminadas pela expressividade dos arquivos televisuais: Larraín decide aderir inteiramente a uma textura videográfica oitentista, filmando em U-matic e produzindo imagens saturadas, com iluminação irregular e enquadramentos instáveis. Aderir imageticamente aos arquivos (e aqui temos um dos paradoxos mais estimulantes do filme) não é investir em uma pretensa “veracidade histórica”, mas justamente o contrário; contaminar todo o filme com a expressividade da televisão é fazer de suas imagens uma instância frágil, igualmente duvidosa, não definitiva. Ao invés de produzir uma hierarquia retórica através do contraste entre suas próprias imagens e aquelas da televisão – que deixaria o espectador em uma posição de fácil identificação com o filme –, No desloca essas relações. Se a disputa política acontece no terreno das imagens, apostar na impureza é demandar o trabalho, é fazer com que a partida não esteja decidida de antemão – e que, talvez, nunca se resolva.

É curioso, nesse sentido, que o filme decida abraçar abertamente a propaganda como seu habitat natural – a um só tempo dramático e fotográfico. Se, em O Segredo dos seus Olhos e Infância Clandestina, a fotografia bem acabada e a montagem sem restos terminam por constituir uma estratégia de encantamento e de programação do olhar que é veladamente publicitária, a impureza e a irreverência do olhar de Larraín transformam, pela via inversa, a publicidade em território do cinema. À tática sub-reptícia efetuada por seus vizinhos, No impõe um contrabando sincero e materialmente visível, um mergulho de filme inteiro na aparência ligeira dos anúncios publicitários oitentistas. Ao aderir à textura das imagens do passado, é no presente que o cinema opera por alteração, encontra os matizes, desloca as temporalidades, promove encontros inesperados entre o kitsch e o engajamento político.

Como bem sabiam tanto Walter Benjamin quanto Alain Resnais, o maior risco de uma aproximação a um passado terrível está em fazer do presente o lugar da superação do trauma, da estabilidade, do apagamento do conflito (que anula a política). Ao final do filme (a opção Não venceu o plebiscito e Pinochet está prestes a deixar o cargo), René repete pela terceira vez seu bordão, antes de apresentar mais um produto aos seus clientes. Totalmente inserido no contexto social de então e apostando em uma nova era, o anúncio de Bellas y Audaces tem direito a um ramo de flores entregue por um galã que chega de helicóptero. O futuro do Chile só pode ser uma propaganda de novela.

Janeiro de 2013

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta