Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men),
de Joel e Ethan Coen (EUA, 2007)

por Ronaldo Passarinho

Impessoal por opção

Em resenha para o New York Times Book Review, o crítico literário Walter Kirn definiu como movie-ready o romance No Country for Old Men, de Cormac McCarthy, lançado no Brasil como Onde os Velhos Não Têm Vez. Sua narrativa já estaria pronta para ser filmada. Outros críticos assinaram embaixo.

O romance intercala passagens narradas em terceira pessoa com digressões em primeira pessoa de um dos personagens principais, o xerife Ed Tom Bell. Em sua adaptação do romance para as telas, os irmãos Coen mantiveram um trecho dessas digressões como narração em off e adaptaram outros em forma de diálogo. São escolhas convencionais em adaptações cinematográficas de obras literárias. Enquanto no romance as digressões do xerife deliberadamente atravancam a progressão dramática, no filme são habilmente escamoteadas. Mesmo quando a visão de mundo do xerife é apresentada diretamente, seu posicionamento no começo do filme não é intrusivo. Narrações em off, por mais inusitadas que sejam, são comuns no início e no final de filmes. Billy Wilder já nos deu até um cadáver-narrador em O Crepúsculo dos Deuses.

Resolvido o problema das digressões, o romance estaria, então, movie-ready? Não. Essa foi a parte fácil. Os Coen foram de uma fidelidade quase canina ao adaptar certas cenas. Quando Llewelyn Moss, supostamente o protagonista, nos é apresentado no filme, ele está caçando antílopes no deserto do Novo México. O espantoso é que mesmo detalhes que passariam despercebidos para quem não leu o romance, como a bota que Moss descalçou para servir de apoio ao seu rifle, são fielmente reproduzidos. Essa atenção para elementos visuais mencionados no romance, aparentemente insignificantes, beira o preciosismo nesta e em outras seqüências.

Depois de tamanha demonstração de fidelidade, o leitor do livro que for ver o filme tem todo o direito de esperar fidelidade até o fim. É lógico que certas cenas e diálogos do romance serão suprimidos, não apenas pela prosaica questão da duração do filme, mas por exigências formais na transposição da estrutura narrativa, por mais dramática ou movie-ready que seja a do romance. É também razoável que, para gerar mais suspense, afinal trata-se, sim, de um filme de gênero, os Coen insiram outros elementos, como o cachorro que persegue Moss no rio, e rearranjem espacial e temporalmente a ação de certas cenas que no romance não são apresentadas em contigüidade, como a carnificina perpetrada por Anton Chirguh no motel enquanto Moss resgata o dinheiro que escondeu num tubo de ventilação.

É da metade para o final que o romance prova não apenas não ser movie-ready, mas quase intratável. Atenção, spoilers a caminho. Como manter o interesse do espectador após a morte do protagonista? No romance, Bell praticamente toma conta da trama a partir daí. Mas sua importância no filme, como bem observou Cléber Eduardo em texto aqui na Cinética, é secundária. Ainda que sua função dramática no romance seja quase irrelevante, sua presença é constantemente sentida graças às suas numerosas intervenções em primeira pessoa. O leitor é obrigado a conviver com Bell, a não ser que pule os textos em itálico que anunciam suas digressões e volte à narrativa.

A escolha mais radical dos Coen foi a de quase suprimir uma personagem, a adolescente a quem Moss dá carona antes de morrer. Nos créditos do filme, ela é listada apenas como Poolside Woman. Suas conversas com Moss estão entre as mais vívidas do romance. É possível que sua morte seja ainda mais sentida para o leitor que a de Moss. No filme, ela é apenas uma estatística. E talvez esteja aí o que há de autoral no filme dos Coen.

Isabela Boscov, na revista Veja, escreveu que o filme não passaria de um exercício de estilo se não tivesse "alma" e "coração", qualidades representadas por Moss e Bell, respectivamente. Mas o triunfo dos Coen talvez tenha sido, justamente, realizar um filme sem alma nem coração. Reproduziram fielmente muitas cenas do romance, incluindo certos diálogos, mas se recusaram a deixar que o sentimento que permeia a trama de McCarthy desvirtuasse o cerebral exercício de estilo que é o filme. Onde os Fracos Não Têm Vez é um filme de autor por negação e impessoal por opção.

Fevereiro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta