in loco - 4o cineop
Sua língua, meu alfabeto
por Rodrigo de Oliveira

De Volta à Terra Boa, de Vincent Carelli e Mari Corrêa; Já Me Transformei em Imagem, de Zezinho Yube; e Noivas do Cordeiro, de Alfredo Alves

Já Me Transformei em Imagem começa exatamente da maneira como Serras da Desordem termina: um plano de conjunto, fixo, com um índio sentado sob uma árvore, dando um depoimento. Mas no filme de Andrea Tonacci um movimento da câmera para o alto desviava a atenção da fala do índio (que, a bem da verdade, sequer compreendíamos, dada a falta de legendas para seu dialeto tribal), marcando a consciência de um discurso de apropriação e associação de imagens que atravessava a própria narrativa do índio, nunca vista como tendo “mais propriedade” que a narrativa que o cineasta armara em torno dele. Já no vídeo de Zezinho Yube, a expressão do índio é soberana. Tonacci jogava a câmera para o céu, para um avião que tornava o plano e a história de Carapiru maior-que-a-vida, e por isso todo sentido de sua fala só tinha razão se transbordasse para além de sua figura, para além das dimensões do plano. No caso de Yube, a força é estritamente centrípeta, e não à toa o índio em frente à câmera diz recorrentemente, e em português claro, um “prestem atenção no que eu digo”.

Tanto Já Me Transformei em Imagem quanto De Volta à Terra Boa fazem parte do projeto Vídeo nas Aldeias, que há mais de 20 anos trabalha junto a populações indígenas ministrando oficinas audiovisuais para que esses povos possam registrar suas histórias e assim restabelecer a circulação de suas culturas dentro das próprias tribos e também dar a ver seu modo de vida, necessidades e reivindicações às populações externas (sobretudo àquelas ligadas diretamente ao Estado e aos órgãos de proteção ao índio). Este último é dirigido pelos idealizadores do projeto, e já na primeira seqüência de De Volta à Terra Boa podemos ter a dimensão do significado da presença destes homens brancos e suas câmeras no interior de uma aldeia um dia massacrada. Um dos caciques, enraivecido, pergunta aos cineastas por trás da câmera se eles podem dizer o nome de quem levou os brancos à então isolada tribo Paraná, em 1973. Expulsando a equipe de sua maloca, o cacique segue, dizendo que “vocês, os brancos, precisam pagar pelo que fizeram”. E há na própria raiz do projeto (e em parte considerável dos trabalhos produzidos pelo Vídeo nas Aldeias) a idéia de uma reparação histórica, uma tentativa de restituir, com o uso da tecnologia e do registro de imagens, as culturas que têm sido sistematicamente devastadas há séculos. O vídeo como um lugar para as tradições seguirem vivendo, e cada vez mais sendo produzido pelos próprios índios, uma vez que a ameaça branca é indistinguível, tratem-se eles de seringueiros escravistas ou equipes de cinema bem-intencionadas.

Mas essas boas intenções esbarram exatamente numa barreira de princípios e da própria natureza constitutiva da cultura de índios e brancos que estes dois vídeos evidenciam de maneira bastante ambígua. Como seremos lembrados pela narração em off do kaxinawá Zezinho Yube, houve no fim dos anos 70 o “tempo dos direitos”, em que a introdução do vídeo em aldeias indígenas era um instrumento de força estritamente política: era através desse registro que as contestações em torno da demarcação de terras, por exemplo, se tornavam documentos num processo de enfrentamento com as autoridades estatais (e nisso, aliás, Andrea Tonacci também foi um pioneiro, com seu Conversas no Maranhão, datado de dez anos antes do início do Vídeo nas Aldeias). Mas no momento em que um velho pajé anuncia para a câmera que já se transformou em imagem, reconhecendo no vídeo uma possibilidade de continuação mesmo depois que morra sem nunca sequer ter lido um trecho perdido de alguma teoria ontológica do cinema – de fato, no momento em que essas imagens deixam de ser registro e documento histórico e passam a se articular como cinema propriamente dito, é inevitável pensar que um novo processo de aculturação está se dando.

É uma questão de linguagem, antes de qualquer outra coisa. E nisso talvez o média Noivas do Cordeiro ajude a pensar esta apropriação. O filme de Alfredo Alves trata de uma comunidade branca, do interior de Minas, mas que por vias diversas sofreu o mesmo tipo de isolamento, preconceito e deturpação que algumas tribos indígenas – e, talvez até em resposta a isso, criou para si tradições e regras de convivência e sociabilidade que são completamente estrangeiras aos nossos olhos. O povoado de Noiva do Cordeiro nasce de um amor fora do casamento que dá origem a uma linhagem de famílias segregadas, de maioria feminina, que ao longo das décadas vai sendo abandonada pelo poder público e pelas cidades vizinhas sob acusações levianas de que se tratava de um bando de prostitutas vivendo num regime proto-comunista. Esta comunidade é o tipo de delírio que qualquer ficcionista adoraria escrever e ainda assim pareceria absurdo, mas que existe no mundo real com uma vitalidade e uma riqueza de sentidos francamente emocionantes. Funda-se uma igreja própria, de moldes quase messiânicos, num regime proibitivo e infeliz, até que uma festa de casamento e um baile de forró façam com que as mulheres do povoado atinjam uma espécie de epifania, partindo então para um modelo de vida libertário e comunal que Julian Beck e o Living Theatre em seus anos mais iluminados não seriam capazes de conceber.

E, no entanto, o que Alfredo Alves consegue tirar disso (muito condicionado pela gestação do projeto para o canal feminino GNT, em que pesem todos os contras de uma produção banalmente televisiva) não é mais que “uma lição para o mundo” – palavras ditas literalmente no filme. A única maneira de constranger uma história tão pulsante e descompassada com a nossa própria história “oficial”, e tornar aquela gente e sua cultura palatáveis para o consumo de auto-ajuda é colocar a sempre duvidosa Lya Luft para narrar o filme em primeira pessoa. Ouvimos sempre um “nossa história começa...” ou “100 anos se passaram desde o primeiro insulto, e nós continuávamos...”, sem que em nenhum momento se dê a chance para que aquelas pessoas possam assumir a narrativa de suas vidas que não através da presença dessa atravessadora de emoções alheias. Em Noivas do Cordeiro a necessidade de enquadramento (no sentido policial do termo) é maior do que a vontade de compreensão, e cada intromissão “aproximadora” da voz de Lya Luft é um passo atrás na percepção de um fenômeno que é único e irrelacionável. Ao contrário, tudo o que se pede dessas mulheres é que sejam como nós, quando a vida inteira elas lutaram para mostrar que é exatamente sua diferença que as torna tão grandes, tão encantadoras.

Em Já Me Transformei em Imagem, guardadas todas as proporções e o grau infinitamente menos danoso, a figura da narradora está simbolicamente encarnada no editor, ele também estrangeiro às especificidades do local em que as imagens foram gravadas, e também impondo um vocabulário aproximativo que força relações onde elas não existem, tentando adequar o inadequável – afinal, a consciência do ser-imagem já é própria destes índios, mas o discurso do ser-cinema ainda é algo que os ultrapassa. Há um momento muito forte no filme, onde vemos o interior de uma grande maloca repleto de gente, todos assistindo a uma projeção improvisada das imagens de um ritual há muito perdido. Antes já ouvíramos alguns jovens índios se perguntar como era possível que seus antepassados caçassem animais grandes apenas com o arco-e-flecha, que já não dominam tanto assim, e logo depois da exibição na maloca, vemos alguns deles tentando reproduzir a técnica vista no vídeo, aprendendo a fazer fogo como os antigos, “caso um dia acabe o isqueiro”. Ali a vontade de registro parece ter encontrado seu lugar e sua justificativa de maneira muito potente: do mesmo modo que, em algum momento da história, a língua exclusivamente falada precisou conhecer sua tradução escrita para que certas tradições não se perdessem, agora o vídeo também é usado como suporte para a perpetuação de um conhecimento de séculos.

Mas fora da maloca, fora desse uso interno e didático, o que vemos não é mais que um amontoado de lugares-comuns do registro de populações indígenas aglomerados sob uma rígida estrutura narrativa. É daí, afinal de contas, que vem a fonte daquilo que se ensina aos índios nas oficinas de audiovisual, e será desse modo que eles reproduzirão enquadramentos, esquemas de montagem, concatenação de planos. A figura do editor estrangeiro serve para afiançar a legitimidade daquilo enquanto cinema, mas o resultado será sempre igualmente estrangeiro. É muito estranho assistir a certos vôos solo que Zezinho Yube e sua equipe realizam com a câmera serem posteriormente organizados à maneira documental mais tradicional, e que seja sua própria voz a amarrar esta história em off não dá mais ou menos propriedade à narração. Tanto em Já Me Transformei quanto em De Volta à Terra Boa ainda seremos submetidos às mesmas imagens de arquivo de sempre (uma variação preto-e-branco riscado de Major Luiz Tomás Reis com Marechal Rondon e Silvino Santos), e eventualmente um ritual tribal poderá servir como ilustração para os créditos de encerramento. É possível que tudo isto seja mais uma manifestação da aculturação pela qual vários dos índios filmados parece ter passado, de tal maneira que inclusive introjetaram a linguagem narrativa da televisão ou da reportagem. Mas é possível também que simplesmente não se tenha dado a chance de que essas culturas milenares, tão fundamentalmente narrativas em todo processo de criação de mitos e lendas que explicassem sua existência, experimentassem também o gosto de descobrir um cinema só seu.

Julho de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta