in loco - cobertura dos festivais
No Lugar Errado, de Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Guto Parente
(Brasil, 2011)
por
Pedro Henrique Ferreira
4 + 1 = 4 + 1
Os dois longa-metragem anteriores dos Pretti/Parente - Estrada
para Ythaca e Os Monstros - abraçavam a espontaneidade
e a precariedade técnica para auto-encenar uma juventude
afundada em uma abundância de referências e, sobretudo,
trilhando um cinema de purgação que exorcizava fantasmas
da arte para se libertar e retornar a seu status de ruído.
Eram percursos contraditórios: almejavam a liberdade, seja
na forma de um grande luto (Ythaca) ou na procura de
um espaço no mundo (Os Monstros), mas por um mergulho
afirmativo numa dramaturgia rígida e num universo repleto
de citações artísticas. Os monumentos que
estes filmes criavam, num ímpeto hiperbólico de
circunscrever uma geração ou um estado histórico
paralizante por um pequeno cosmos cearense, com energia
vibrante e uma notável vontade de cinema, concluía-se
numa romantização de sua condição:
num panegírico do artista rejeitado pelo mundo (que, ao
mesmo tempo, também o rejeita), que assume uma postura
de rebeldia contra uma forma de vida dominante e, sem relutância,
tapa os ouvidos e se exclui dela, encontrando eco para o seu fazer
artístico na amizade, único castelo seguro a se
erigir neste mundo imerso em escuridão.
O
que salta aos olhos em No Lugar Errado é como
este status é abalado por um duplo movimento.
De um lado, des-romantização do isolamento, da amizade
e da criação compartilhada. Do outro, abertura concreta
para este mundo que anteriormente lhes rejeitava e era por eles
rejeitado. Já não há mais jornada, trajeto
pelo mundo disparado por uma perda/luto inaugural. Há um
deslocamento para além de si mesmo, uma vontade de relação,
numa postura de notável maturidade que também se
demonstra no ritmo das cenas e na intensidade dos dramas, na forma
como o espaço é construído e nos sentidos
impressos em cada recurso estético. Maturidade não
porque estamos frente a uma obra mais “velha” em comparação
a uma mais nova, mas a uma obra que não grita e sacode,
e que, em vez de romantizar o seu lugar no mundo, expõe
de forma mais profunda o que é habitar este lugar.
Qual é, portanto, este lugar? No
Lugar Errado se passa quase inteiramente em um palco onde
é encenada a peça Eutro, de Rodrigo Fischer.
Os autores, que sempre estiveram confortáveis com a co-autoria
e uma política da criação coletiva, em princípio,
teriam encontrado mais um aliado no autor de uma peça sobre
dois casais de jovens que se re-encontram e vivem uma noite de
loucura. A aliança está clara nas relações
entre teatro e cinema que, em principio, parecem estar em jogo,
mas somente até certa medida. Pois, quando adentramos a
diegese da encenação teatral, não há
mais motivos para se pensar que há um abismo ou uma ponte
entre dois modos diferentes de representação –
no que se refere à encenação e ao trabalho
dos atores, No Lugar Errado é Eutro.
A
diferença entre os dois títulos (um que passa uma
idéia de conciliação entre eu/outro, e outro
que demarca justamente uma distância) não se justifica
exatamente na dramaturgia, mas em um outro conjunto de recursos
que denunciam a fronteira entre as obras: nas luzes que, diferentemente
da armação da peça Eutro, se concentram
somente em um ambiente, afundando o resto do espaço na
escuridão; no cenário minimalista, esvaziado; na
planificação das imagens, com rostos chapados contra
fundos negros bastante semelhantes aos de Os Monstros;
na decupagem que se esforça para pôr-se passiva frente
ao desenrolar da ação, mas interfere diretamente
na organização espacial; nas seleções
das melhores tomadas em seis dias de filmagem de uma narrativa
errática, bastante improvisada pelo elenco, diferente de
vez a vez; nas imagens de uma Brasília vazia, com sua arquitetura
moderna e seus sinais de trânsito piscando, que antecedem
e concluem o filme.
Estes
recursos se ajuntam para criar uma ambiência de devassidão,
um mundo tétrico que, se não chega a ser claustrofóbico,
tem com o palco onde se desenrolam as ações uma
relação inconciliável – os tais planos
de Brasília não “casam” com o cenário
teatral, apenas demarcam a distância entre o grupo de amigos
e o resto do mundo – e No Lugar Errado termina
tratando com sobriedade desta distância, esta incapacidade
de contato, este descolamento entre a cena daqueles quatro jovens
e o fundo negro que é o resto do mundo. A narrativa se
concentra no instante em que a amizade, a única coisa neste
universo que resguarda dignidade, periga se romper. Longe do tom
de elegia que a amizade adquiria em seus filmes anteriores, agora
esta mesma sobrevive em meio a conflitos internos: numa noite,
as relações são tensionadas por brigas, discussões,
traições, culminando na cena do estupro para, no
final, mesmo que constrangidos, todos se abraçarem e a
amizade permanecer incólume: é ela o dado inaugural
inabalável, a tábula rasa, e não o resultado.
Mas é também um subterfúgio. O subterfúgio
de um conjunto de jovens, ou de artistas que se agarram uns aos
outros para sobreviverem à devassidão deste ambiente
sombrio, desta falta de perspectiva que os desrumos históricos
do cinema brasileiro lhes puseram ou que, pelo menos, acreditam
estar lá.
O
mérito de No Lugar Errado é problematizar
e criar atrito no universo interno da amizade, mas também,
e principalmente, abandonar as ilusões utópicas
e românticas para, numa verve mais telúrica, pôr-se
em relação com o mundo, ainda que esta relação
seja distante, errada, inconciliável. Estar no lugar errado
é não estar no Ceará, mas estar em Brasília.
É não filmar a si mesmo, mas um outro conjunto de
atores. É não filmar uma cena cinematográfica,
mas uma cena teatral. É deparar-se com uma outra forma
de amizade que até então não pertencia ao
universo dos quatro. É fazer de seu próprio processo
artístico uma forma de confronto e (talvez) imposição
sobre o outro, empreitada que nos recorda vagamente as idas de
Pedro Costa a Fontainhas para armar luzes e tableaux
em uma realidade apartada que não lhe diz respeito. Encontrar
a si mesmo, conhecer-se, sempre numa relação com
este outro. Não por espelhamento, mas por distância.
Por uma diferença inconciliável.
Novembro de 2011
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