No Meio da Rua,
de Antonio Carlos Fontoura (Brasil, 2005)
por Cléber Eduardo
Mentirinha chanchadesca
Existem filmes que, por terem características
de difícil assimilação pelo crítico, tornam-se um desafio. Isso
não é bom nem ruim. Existem desafios e desafios. Podemos nos ver
diante de um desafio potente aos nossos critérios de análise e
avaliação, como devem saber os primeiros admiradores de O Ano
Passado em Marienbad, de Alain Resnais, ou termos nossa capacidade
de entendimento desafiada pelas imagens, como percebeu quem teve
de escrever sobre A Paixão de Jacobina, de Fabio Barreto
(para ficarmos em um exemplo célebre por sua capacidade de instalar
interrogações e exclamações). Cabe salientar que a incompreensão,
na maioria das vezes, é uma inspiração para a recusa, nos vetando
a disposição, sempre necessária, de compreensão da proposta. Mas
também há casos em que o desejo de aceitação, independente do
juízo de valor, é abortado por dúvidas sobre a própria proposta,
alimentadas por um resultado de difícil assimilação. Seria um
filme assim fruto do projeto de seu diretor ou a soma de equívocos
na transformação de intenção em prática?
Essa é a pergunta a rondar cada seqüência de No
Meio da Rua, de Antonio Carlos da Fontoura – visto com mais
cinco pessoas, no dia de sua estréia, em uma sessão das 16h50
no Arteplex 3, em Botafogo (enquanto a TV Globo transmitia o segundo
tempo de França e Togo, concorrente pouco expressivo para explicar
a baixa audiência do filme, ainda mais com a ausência em campo
de Zinedine Zidane). O contexto da sessão é aqui colocado porque
contextos podem interferir na percepção. Na edição daquele 23
de junho de O Estado de São Paulo, Fontoura afirma sua convicção
em torno da popularidade em potencial de seu filme, que, segundo
diz, é fruto de um desejo de anos, enquanto se dedicava às suas
atividades na Rede Globo. Fontoura, é preciso lembrar, garantiu
sua vaga na memória de muitos cinéfilos e críticos com apenas
dois filmes expressivos, Copacabana Me Engana e A Rainha
Diaba, mas, depois da fase televisiva nos anos 80, retornou
ao cinema com dois filmes anêmicos, Uma Aventura do Zico
e Gatão de Meia Idade. No Meio da Rua não representa
nenhuma re-evolução, por assim dizer, e dificilmente sobreviverá
por conta de seu boca a boca.
Mesmo os espectadores com o olhar menos educado
tendem a achar rampeira a narratividade visual de Fontoura, apoiada
em uma câmera ocasionalmente móvel e infeliz em suas aproximações
com os atores, sobretudo quando opta pelo primeiro plano de frente,
como na seqüência inicial – situada em uma aula de inglês, certamente
um dos momentos mais toscos do cinema brasileiro recente. Impossível
também ignorar a composição de uma personagem infantil, tagarela
e arrogante, que parece pensada para cativar a antipatia do espectador,
carregando em suas palavras e gestos tudo de mal de uma vida endinheirada,
que a estimula a pensar apenas a partir de seu umbiguinho. Maniqueísmo
tolo, cujo contraponto, não menos tolo, são as crianças da favela,
verdadeiros anjinhos em sua encenação.
Sob a desculpa de estar fazendo um filme infantil,
o diretor faz um filme primário, às vezes primitivo, com enquadramentos,
cortes, movimentação de atores e interpretações desleixadas, sem
o cultivo da crença do espectador, mesmo em circunstâncias declaradamente
inverossímeis. Cabe aos diálogos explicar os acontecimentos, sem
nenhum teor de conversa, mas essas explicações não esclarecem,
fora do estatuto das ações, as razões das escolhas visuais. Seria
esse um filme planejado por Antonio Carlos da Fontoura ou o resultado
de um festival de opções equivocadas?
No Meio da Rua insere-se numa tradição
brasileira pós-Cinema Novo de enfocar os ruídos ou abortos de
comunicação entre classes sociais – ou entre o asfalto da burguesia
carioca da Zona Sul, aqui representada por um garoto loirinho
de família bem abastada, e a favela-morro dessa mesma Zona Sul,
incorporado por um malabarista negrinho de semáforo, de uma família
numerosa apertada em um barraco. Alguns filmes recentes têm explorado
essa premissa dramática, de Como Nascem os Anjos e Seja
o Que Deus Quiser, de Murilo Salles, a Quase Dois Irmãos,
de Lucia Murat, e Cafuné, de Bruno Vianna (esse exibido
apenas em mostras até agora, com lançamento planejado para agosto
de 2006). A intenção de Fontoura reside em, por meio da aliança
de afeto entre as duas crianças, ressaltar duas características,
uma derivada da realidade, outra utópica, ambas representadas
de forma caricata. Uma dessas características é a desconfiança
dos pais ricos em relação aos signos da pobreza suspeita (menino
negro, trabalhador de rua, morador de favela). A outra é a ingenuidade
romântica e irreal do guri endinheirado quando adentra o espaço
alheio e vizinho (o morro), vendo na favela o lugar de seus sonhos
infantis, no qual se livra do tédio de sua vidinha burguesa e
toma contato com o mundo real, sem carregar consigo nenhum preconceito
herdado em sua educação paranóica com a segurança. Um burguesinho
dos sonhos da esquerda amaciada.
Fontoura não economiza em populismo nessa operação,
ressaltando o lado festivo do morro e banalizando a crueldade
de seu ambiente, encenado de forma chanchadesca mesmo os momentos
de tensão. Também parece alinhar-se com uma mentalidade política
da elite humanista contemporânea ao mostrar o simples contato
entre a cobertura da pirâmide e seu rodapé como algo transformador.
Toda a questão do abismo de classes é resolvido, em cena, com
o presente (um game) do menino rico para o menino pobre,
embora, nas imagens finais, quando o almofadinha desce o vidro
do carro, libertando-se de seu aquário, haja sinais de que, ao
longo de sua experiência no morro, viveu um rito de passagem,
da alienação para a consciência social.
Mas consciência, exatamente, para quê? Para abrir
as portas de sua casa? E no que isso muda a vida do morador da
favela, que continuará a trabalhar na rua, permanecerá com a mãe
fora de casa trabalhando para as madames, prosseguirá ganhando
o pão do café da manhã seguinte? A fabulação de Fontoura, mais
que questionadora, é de conforto. Diz pelas imagens que basta
abrir um vidro, vendo o “outro”, para o outro deixar de ser outro.
Muito cômodo para se livrar da culpa social da classe média intelectual.
editoria@revistacinetica.com.br
|