Nome
Próprio, de Murilo Salles (Brasil, 2007) por
Paulo Santos Lima
Um diretor, uma atriz, uma câmera Ainda
que haja o corpo de Leandra Leal, na melhor atuação feminina em anos de cinema
nacional, e uma inédita imersão no universo hedonista dos blogueiros (ou dos blogueiros
hedonistas, se preferir), Nome Próprio é um filme cujo interesse maior
está fora dele, ou seja, na sua própria confecção – em Murilo Salles e em como
sua câmera captura os planaltos corporais de sua atriz. Assim, mais importante
que a história labiríntico-íntima da protagonista é a opção feliz tomada por um
cineasta que chega perto dos 60 anos. Enfatizando, não é
pelo universo abordado, pois não é de hoje o interesse de Murilo Salles pelos
jovens. Mas sim pelo comprometimento de um cineasta em literalmente pegar e controlar
a câmera e se colocar junto à sua personagem. Mudança radical para alguém que
quase sempre se postou acima e à parte de seus personagens, em distância segura
para impor uma falsa objetividade para um registro que é, na verdade, bastante
hemorrágico, engordurado e over. São exemplos a comédia de erros nonsense
de Como Nascem os Anjos (1996) e, sobretudo, a neochanchada descolada Seja
o que Deus Quiser (2003), num tipo de cinema cuja melhor ilustração estaria
nas comédias dos irmãos Coen, na medida em que eles se colocam como deuses que
assistem, superiores e em franco e covarde deboche, às patetices boçais de seus
filhos aqui embaixo. Na
experiência do filme na tela, há algo mais notável que esse “bastidor” de Murilo
Salles com a câmera digital na mão ou essa proximidade à protagonista Camila:
é a construção de um universo típico da personagem, ou seja, instalá-la efetivamente
nos lugares, orná-la às suas coisas, objetos e dengos, numa relação corpo-mundo
(“mundo”, no caso, a protagonista Camila e seu espelho chamado computador). Isso
parece pouco, ou mesmo óbvio e recorrente nas produções cinematográficas desde
sempre, mas é o que responde ao que é Camila no mundo. Egocêntrica, perdida e
numa insana busca autocentrada por sua própria identidade ou encaixe nesse mundo,
Camila é uma transeunte perdida nas alamedas da vida adulta, que se abriga na
metafísica da internet – ou do computador, que é quase um dado conceitual no filme,
algo extremamente abstrato em comparação com os corpos, bares, suores etc. E que
também é o plano teórico onde Camila pode confirmar literariamente “quem ela é”. Ou
seja, Camila pendula entre o escapismo da ficção (tela-luz do computador) e o
encontro com a realidade (as relações humanas, a rua, os bares, a areia da praia).
O que há, em ambos os casos, é um corpo, belíssimo em seus jovens anos, desnudo
e em presença magnífica diante das coisas. O tubo do monitor do PC, assim, ilumina
o corpo da escritora. O mesmo corpo que se machuca na busca afã, que toma tapas
do namorado traído ou que escorrega em atividades loucas, como esfregar uma escadaria
de prédio. É com o corpo, então, que Camila prospecta o mundo. É com sua carne
tenra que tenta sentir o organismo dos seres e coisas, do chão que serve de “mesa
de trabalho” para escrever seu livro ao namorado da amiga que a salva de um afogamento
na praia. Camila é um ser sensorial que procura a tal identidade,
ou, melhor dizendo, descobrir que personagem ela é no mundo. Essa confusão simbólica
entre a Camila pensada, procurada, e a Camila pé no chão-escritora é um desastre
ao filme, mas, de todo modo, o que está em questão, verdadeiramente, é o corpo.
O corpo que é a única certeza de Camila. E
aqui voltamos a Murilo Salles, que, de modo extraordinário, quase hipnotizado
e siderado, com a câmera colada e fiel à Leandra Leal-Camila, faz uma escrita
bastante arejada e contemporânea, ou, um filme francamente “jovem” (com perdão
do termo). Talvez essas imagens de fluidez e concisão inacreditáveis, magnéticas
aos nossos olhos, não armem uma estrutura fílmica completamente sólida. Mas seria
uma de tantas perguntas a serem feitas a Nome Próprio, que, à parte ser
um belo filme de corpo (belo por Leandra, mas também por um cineasta de 58 anos
finalmente conseguir chegar próximo de algo mais afinado a este tempo histórico
sem os garranchos do filme de 2003), é uma obra cheia de ambigüidades a respeito
do que ela é para o mundo. Assim, se Murilo Salles ultimamente
vem aludindo universos macros (o nosso país) a partir de universos completamente
absurdos de tão ficcionais, ou seja, fala de algo sério a partir da comédia, neste
seu Nome Próprio, o foco é restrito a uma personagem. Se Camila pode ilustrar
esse largo contingente de blogueiros e fotologueiros que fazem seus “queridos
diários” a fim de retroalimentar sua própria imagem, o fato é que isso não parece
uma questão ao filme, mas sim à Camila. Uma impressão que
não pode ser silenciada, contudo, é a de que, ao se colocar junto à sua personagem,
Murilo Salles não tenha passado o cajado de deus a ela. Ainda que ela marque seu
corpo pelas graxas da vida, faça o suor correr pelos poros, deixe o relevo à luz
dos nossos olhos, ela tem um semelhante olhar superior por tudo e por todos que
a circunavegam ou a cruzam. Mesmo aos tropeços boçais, a alteridade está na pauta,
e a arrogância com a qual acha legítimo trair o namorado será a mesma adotada
para esbravejar contra o “príncipe encantado” que simplesmente não quis fazer
da meia dúzia de transas uma relação eterna. Curiosa
a semelhança entre o diretor e sua personagem. Camila, patética nessa sua relação
combativa e autoritária com as coisas, deixa transparecer tanto a estupidez quanto
a beleza, tanto a lucidez do “seguir em frente” quanto a ingenuidade romântica.
Murilo Salles, com suas afirmações proferidas com tantas certezas à mídia e palcos
de festivais, diretor que se coloca em soberba na confecção de seus filmes, homem
seguro da caligrafia que adota nos seus filmes, possui uma filmografia bastante
irregular. Por outro lado, é derrapando nessas suas tentativas de trazer à vista
temas novos, abordagens jamais feitas, que Murilo fez um dos mais notáveis trabalhos
de câmera-corpo do cinema nacional recente. Questão fundamental
ao cinema, arte realizada sob jogo de forças múltiplas, sobre quem é o grande
autor dessa felicidade visual presente em boa parte de Nome Próprio. A
resposta está numa dialética etérea, quase de prestidigitação, entre o olho de
Murilo Salles, o da câmera e o semblante e corpo de Leandra Leal. Agosto
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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