No
Meu Lugar, de Eduardo Valente (Brasil/Portugal, 2009) por
Francis Vogner dos Reis Drástica
melancolia
Na primeira sequência de No Meu
Lugar dois policias atendem um pedido de socorro de uma mulher que salta na
frente de sua viatura. Há alguém dentro de uma residência de classe média no bairro
das Laranjeiras que ameaça atirar no dono da casa. O policial Zé Maria entra na
casa e a câmera não o acompanha. Depois de uma breve discussão, ouvimos dois disparos.
Na última sequência do filme, Beto mexe nas gavetas do armário de um closet e
encontra uma arma. Ouve-se, de um outro cômodo, o dono da casa reclamar da demora
da empregada Sandra em abrir a porta para ele. Beto sai do closet e a câmera não
o acompanha enquanto ouvimos ameaçar o dono da casa com a arma encontrada. Fim.
O leitor que ainda não viu o filme não precisa se desesperar por ter sido contado
aqui o fim do filme, porque No Meu Lugar termina onde ele começa. O fato
é retomado sob outra perspectiva; há uma inversão de ponto de vista. No
Meu Lugar reúne três histórias, unidas pelo assassinato de um homem de classe
média dentro de sua própria casa, em uma ação desastrada do policial. A do entregador
de supermercado Beto antes do assassinato; a do policial Zé Maria alguns meses
depois; e da família burguesa cinco anos após os eventos. Pode-se usar uma série
de ferramentas para se falar do filme, umas delas a sociológica. O risco é repisar
o óbvio e anular a sensibilidade particular do filme. Pois se a busca de Valente
é de olhar pra essas questões, não se trata
de qualquer tipo de olhar, mas um olhar que assuma os pontos de vista colocados
em jogo. As perguntas básicas seriam: o que dessas questões ele consegue extrair
do filme? E como é esse olhar? Se o diretor assume, em cada porção do filme, os
diferentes pontos de vista, ele não os cruza para não contrapô-los – como já vimos
em outros filmes em que esse tipo de entrelaçamento sugere uma mecânica determinista
e quase metafísica, como os filmes de Iñarritu, por exemplo. Em No Meu Lugar
não há imagens em que vemos os protagonistas de cada porção da história dividindo
o mesmo plano; não há uma sinfonia de situações paralelas que faz todos os personagens
partilharem do mesmo destino (como em Crash, de Paul Haggis ou Magnólia,
de Paul Thomas Anderson). Como conceito, o que Eduardo Valente propõe é bastante
lúcido para escapar dessas armadilhas. Diferente de filmes
cariocas dos últimos anos, como Cafuné, de Bruno Vianna ou Proibido
Proibir, de Jorge Durán, os personagens só lidam com “os seus”. Não há um
cruzamento entre os personagens (de estratos sociais diferentes) além do fato
inicial. Mas existe uma outra questão em No Meu Lugar que o liga aos filmes
de Vianna e Duran, e esta é a melancolia que dita um estado de espírito da cidade.
No filme de Vianna, os planos de neblina – entre as cenas - no Rio de Janeiro
dão o tom; no de Duran, certa vertigem; e no de Valente, os espaços escuros, vazios
e uma cidade nublada. Nos três, um Rio de Janeiro melancólico. A soma da angústia
dos personagens com a barbárie que irrompe como um fato violento em um cotidiano
em que a sombra da violência (em suas formas mais variadas e sutis) é latente.
Mas enquanto os filmes de Durán e Vianna se valem de uma dramaturgia mais concentrada
em um desenvolvimento gradual (ainda que com leves digressões no caso de Cafuné),
em que a ação dos personagens é cadenciada rumo a um destino derradeiro (mesmo
que “em aberto”) o de Valente, apesar de criar três narrativas que se desenvolvem
paralelamente a partir de um dispositivo bem específico (um fato de onde nascem
duas histórias e para onde uma converge), tem a sua força em momentos isolados,
em fugas, que não são funcionais narrativamente, mas que é onde os sentimentos
que são perseguidos pelo filme aparecem em estado bruto. A
força e as partes mais bonitas de No Meu Lugar não estão estritamente a
serviço da trama, pelo menos não de forma direta. As cenas em que os momentos
(encontros, solidões) são menos verbalizados e descritivos são formidáveis, e
nos dizem mais sobre essas vidas do que a naturalidade controlada de outras sequências.
O encontro de Beto com o tio na cozinha possui a graça da surpresa e a conversa
entre eles não se faz em torno da funcionalidade, mas simplesmente do afeto. É
uma conversa um pouco vacilante (parecem mais tatear assuntos do que executar
realmente um único assunto). Todo
afeto dedicado aos personagens, às vicissitudes e ansiedades de suas vidas vem
à tona. Assim como o encontro em um beco de Beto com um amigo do tráfico que carrega
um fuzil. Eles dividem o cigarro. Falam pouco, algumas amenidades. O rapaz com
o fuzil ouve tiros, se volta e some no fundo do beco. É a cena menos prosaica
do filme, um pouco estilizada até. Ao mesmo tempo em que não foge de um registro
mais ou menos fiel do cotidiano no morro carioca, parece um evento absurdo e surreal.
As cenas de Lili e Gui também nos dão a ver com muita acuidade (e aí sim, com
distinções mais profundas) a relação da adolescente e do garoto com o fato originário.
A garota apreende um pouco da gravidade de voltar à casa, o garoto ou ignora ou
arruma subterfúgios para lidar com a situação de voltar à casa. As cenas dos dois
são feitas sem cerimônia, são diretas, menos interessadas em sublinhar o desconforto
e a angústia (não há letargia no caso deles), e sim em nos dar a ver o comportamento
de ambos com vitalidade e gosto. Não
concordo com nosso editor Cléber Eduardo que, no catálogo da Mostra de
Tiradentes, afirmou que o filme tem uma “doce resignação”. No Meu Lugar
tem, na verdade, uma entrega dos personagens às contingências, uma consciência
de “limite”. Mas isso não é doce, e também não é necessariamente resignado. É
aflitivo. O problema é que há uma aparente complacência feita por meio de detalhes
de sensibilidades pessoais (cotidianos, afetos) que se em um primeiro momento
parecem revelar os personagens, depois parecem escamoteá-los por meio de uma naturalidade
bastante marcada e controlada. Valente e o co-roteirista Felipe Bragança evitam
uma caracterização excessivamente negativa dos personagens: é como se não interessasse
a eles as suas inflexões. Tudo é amenizado por uma docilidade descritiva e expressiva.
As cenas de Zé Maria com a filha e de Beto com sua mãe e irmã os tornam “gente
comum”, gente amorosa e frágil, quase um “nivelamento por baixo”. O processo de
desenvolvimento de “cada lugar” – do policial Zé Maria, da família e do entregador
Beto – resulta em sentimentos e anseios um pouco neutralizados. Eles acabam por
administrar a falta de perspectiva. Um Sol Alaranjado, primeiro curta de
Valente, também trabalhava uma atmosfera desse tipo, mas não era vacilante. Era
direto e preciso. Todas essas cenas de No Meu Lugar,
entre alguns outros “instantes” e situações menos marcadas pela necessidade de
demonstração incisiva do estado dos personagens, fazem vir à tona de maneira muito
sincera certa atmosfera bucólico-tediosa do Rio de Janeiro. O filme reflete uma
melancolia bem comum a essa geração, como na música carioca, por exemplo, fizeram
os Los Hermanos. Não por acaso há um vínculo estreito da carreira do diretor com
a banda, já que ele dirigiu videoclipes e DVD da banda, e usou suas músicas em
dois de seus curtas. Essa melancolia carrega, de modo acentuado, uma incerteza.
É como se a qualquer momento pudesse irromper algo inesperado, que alterasse a
ordem das coisas de maneira drástica. É o Rio que vemos hoje. Novembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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