in loco - 4o cineop
Notas Flanantes, de Clarissa Campolina (Brasil, 2009)
por Rodrigo de Oliveira

Rés-do-chão, fundo do poço

Notas Flanantes é o resultado de duas questões centrais (e de certo modo opostas), com as quais Clarissa Campolina se debate logo no começo do filme, via letreiros ou narração em off. Primeiro, a idéia de uma “cidade inventada”, cujos mapas a diretora desenhava, imaginando este espaço onde se misturam sonhos e alguma intuição. Depois, o confronto com a cidade existente, com a Belo Horizonte real, que um dia ela é chamada a definir – “a cidade em que acordo todos os dias”. A resposta que o filme dá a essa equação parece só ser possível diante da aleatoriedade: com um mapa nas mãos, sorteia-se o espaço geográfico que a diretora visitará com sua câmera, e ele dificilmente corresponderá a qualquer de suas invenções nem tampouco ao que de realidade ela imaginava conhecer dali.

É novamente a lógica do acaso que move um filme produzido no interior da Teia, um acaso que opera pelo que de mais chamativo possa existir no “espaço cênico” da urbanidade (em Acidente, por exemplo, eram nomes curiosos/poéticos de cidades mineiras, e o que Cao Guimarães e Pablo Lobato encontrariam in loco que pudesse dialogar com esses nomes em algum sentido). Mas a essa altura, depois de nos serem apresentados trabalhos tão diversos e ao mesmo tempo tão comumente traçados por esse grupo de realizadores a quem se atribui, grosso modo, a instituição de um certo “documentário poético mineiro”, é de se perguntar por que o acaso e a incerteza servem como motores da realização se, uma vez diante do mundo, aquilo que se procurará será sempre a mesma coisa, sempre uma variação em torno dos mesmos elementos (de cena, mas também de tempo, de condicionamento estético)?

O sorteio leva a um bairro qualquer, e o que há neste bairro não corresponde a sua invenção delirante nem a sua realidade todos-os-dias: veremos folhas ao vento, uma rua sendo varrida, os pés da pessoa que varre, a água escorrendo de uma casa. Outro bairro, outro sorteio, o acaso agindo em seu máximo, e então o que o torna diferente ou igual ao anterior, o que o torna parte desse tabuleiro enorme e difuso que é a cidade? Nunca saberemos, porque só restarão parquinhos em praças públicas, um balanço vazio, alguns velhos jogando damas (em verdade, apenas seus dedos e as peças do jogo). Mais um espaço novo, ainda não dominado, apresentado pela sorte, e então o conforto só é encontrado quando a câmera enxerga uma sacola plástica voando solta pela rua – este talvez um símbolo evidente demais da falência desse tipo de operação em que se tenta tirar a fórceps algum tipo de poesia da banalidade.

É difícil imaginar que tipo de postura leva Notas Flanantes sempre a ficar no andar térreo das suas aspirações (é apenas um mapa comum, nada tem relevo). Num momento, o filme se encontra com um homem que espera ser atendido ao portão de uma casa. A câmera está distante, mas não imperceptível, e ele logo começa a encará-la. Essa tensão não dura muito tempo – e aí a integridade de um filme como Nem Marcha Nem Chouta fica ainda mais impressionante – porque tão logo o homem insista no confronto, a câmera logo aponta para o chão, porque o chão não devolve olhares, não inquire, não reage. Pouco tempo depois, teremos chão e só ele, com o passeio de uma formiguinha ativamente abrindo caminho, e é de se perguntar o que Belo Horizonte tem a ver com isso, ou o que desse contexto imenso pode ser expresso por essa atitude metonímica torta. A resposta imediata talvez fosse o medo puro e simples, medo do que é grande e incontrolável, medo do acaso real, e não dessa fabricação distorcida dele.

Mas há a narração. Notas Flanantes investe num texto de forte carga poética/sentimental, dito em primeira pessoa, que acompanha todo o traçado do filme ao redor dessa terra-do-nada-e-de-ninguém. Na maior parte dos casos, é essa voz (de Clarissa, mesmo que factualmente seja de outra pessoa) que dá conta de tudo aquilo que a câmera relegou ao fora de quadro ou ao fora de cena. O tom, no entanto, é quase inteiramente ficcional, não apenas pelo modo como desfia suas verdades cotidianas, mas porque dá conta de um personagem fictício e cambiante que Clarissa utiliza em diversas das ocasiões – numa conversa nunca filmada com uma mulher desconhecida, ouvimos que a diretora decidiu que se chamaria Maria Aparecida; numa outra, igualmente não filmada, saberemos que embarcou na confusão de um senhor numa esquina que disse conhecê-la e lidou novamente com este ser-um-outro que a rua lhe exigiu. A voz chega a lugares que a imagem é incapaz de habitar, e o ápice dessa relação (e talvez o momento mais forte do filme) é quando um dos lugares escolhidos é descartado imediatamente enquanto espaço do conforto – não havia nenhum, afinal: um lugar abandonado, que impressionou a diretora pelo cheiro forte de uma estrada que leva a um sanatório, “mas lá não liguei a câmera”.

O que esperar desse cinema que se sente impedido de filmar um cheiro? Impedido de filmar a interação entre a diretora e o velho que a reconhece numa esquina, mas que não abdica de registrá-lo sozinho e à distância enquanto perambula por essa mesma esquina? Desse cinema que só consegue filmar pés, e nunca rostos? Que não se furta em exacerbar na edição de som os gritos de um pastor evangélico num culto, mas que filma apenas a placa da igreja e nunca ousaria cruzar o limite da porta adentro? Já não é também o caso de se dizer que o importante aqui é a extensão do plano, a duração levada ao paroxismo sempre esperando pelo inesperado (no que, aliás, sempre se corre o risco de simplesmente ter-se visto Five, de Abbas Kiarostami ou a filmografia de James Benning e entendido tudo errado), sobretudo porque Notas Flanantes depende muito de uma certa agilidade de montagem, porque há muito para se dar conta e muito pouco tempo a se prender nos detalhes. Mas é ali, é no detalhe que o filme encontra um refúgio contra tudo aquilo que ele inicialmente se dispusera a admitir. É o fundo do poço, o fim de uma linha que vampirizou de tal maneira o objeto físico em nome de uma suposta suspensão transcendente que dele já não se pode perceber qualquer fisicalidade, e a partir dele já não se pode mais escapar para qualquer outro lugar que não a dura realidade de sua inexpressividade. Um chão já foi o mundo (Andarilho vem à cabeça), mas em Notas Flanantes ela não é superfície, não é chão, já não é nada a não ser esconderijo. E, no entanto, ainda ecoa a narração em off, os personagens criados e nunca vistos, as histórias contadas e nunca filmadas – e é ali, na tela preta, na ausência de imagem (que não deixa também de ser um esconderijo, mas de outra ordem), que talvez se anunciem os próximos passos desse exercício de validade expirada.

Julho de 2009

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