Nouvelle Vague Brasileira: Onde, quem, quando?
Na reportagem da Bravo, a enunciação se torna enunciado
por Cléber Eduardo e Eduardo Valente


Idéias só podem ser expressas em forma de idéias. Nos meios de comunicação, regidos, segundo Gilles Deleuze, pela reivindicação imperativa da crença em palavras e imagens como a verdade sobre algo, não existem idéias. Só há palavras de ordem clamando por crença. Deveríamos saber disso quando uma parte dos integrantes de Cinética aceitou ser transformada em personagem da revista Bravo. Pauta: os críticos cineastas.

Em uma reportagem sobre alguns desses críticos, a revista classifica o grupo como “Nouvelle Vague Brasileira”. Para justificar a analogia, comete-se erros não de idéias, mas de informações mesmo: falsas objetividades, com sentidos diversos. Afirma-se que Eduardo Valente foi professor de Felipe Bragança na UFF, quando sequer é (ou foi) professor nesta universidade. Ou que Daniel Caetano é "parceiro de trabalho nos sets" de Luiz Carlos Oliveira Jr, o que nunca ocorreu. E, se Cléber Eduardo e Ilana Feldman formam um casal, eles não se conheceram na UFF – onde Cléber nunca estudou, ao contrário do suposto pela Bravo. Trata-se de ficções nada baseadas em casos reais, jamais referidas na apuração pelos entrevistados. Logo entendemos que são relações criadas a fórceps para que a pauta faça sentido. Da mesma forma, é curioso que a matéria afirme uma "missão carioca", quando três dos seis entrevistados não só moram, como foram fotografados e entrevistados em São Paulo. Se Luiz Carlos e Ilana são cariocas de origem, Cléber é tão paulistano quanto se pode ser – ainda que, sabe-se lá como, seja botafoguense. Haveria vários outros exemplos a listar, mas fiquemos só com os mais gritantes.

Os erros de informação não ficam restritos, porém, ao nível biográfico de cada personagem da reportagem, e se aprofundam no nível das informações históricas. Alain Resnais é definido como parte da ala da Nouvelle Vague/Cahiers du Cinéma (a vertente dos críticos-cineastas), quando não exerceu atividade como crítico militante e, se pode ser considerado parte da cena da NV, não era próximo do mesmo grupo formado na revista. A reportagem parece ter confundido Resnais com Jacques Rivette, talvez o mais sólido dos críticos dessa geração e dos Cahiers nos anos 50-60, embora o menos conhecido pelo senso comum – mesmo o senso com lustro, como é o caso da Bravo. Da mesma forma, Agnès Varda, também contemporânea da Nouvelle Vague, nunca foi parte de deu núcleo duro, caso da turma dos Cahiers.

Não obstante os equívocos originais sobre quem são de fato os membros de cada grupo e como se dão suas relações, talvez a maior distorção venha mesmo da junção entre as partes. Na matéria, cada um dos personagens da reportagem aparece com um quadro onde se vê o rosto de um cineasta da Nouvelle Vague, como se cada cineasta francês nas mãos dos críticos brasileiros fosse seu ídolo, ou modelo a seguir; seus patronos ou paraninfos espirituais, digamos assim. No entanto, os personagens brasileiros da matéria, ao contrário da aparência criada pela enunciação (textos + fotos), não escolheram esses cineastas para segurar em suas mãos e, talvez, nem tenham intimidade maior com esses artistas – ao menos enquanto modelos, como imagens de determinadas “idéias e ideais” de cinema e crítica. Ao contrário: quando solicitados a segurar uma superfície transparente na sessão de fotos para a Bravo, foram informados textualmente que, naquele espaço quadrado, seriam projetadas imagens oriundas de seus próprios filmes. Nunca se falou numa centralidade da relação com a Nouvelle Vague – jamais no processo das fotos, mas também não na apuração, onde o movimento francês foi citado longinquamente. A pauta versaria sobre a especificidade dos filmes dirigidos pelos críticos, e da convivência num mesmo grupo entre diferentes atividades (crítica, realização, etc) do escopo cinematográfico.

Não sejamos puristas. É óbvia a possível aproximação acrítica entre um grupo de conhecidos que são críticos e realizadores de curtas ou longas e a liderança da Nouvelle Vague. Talvez haja o compartilhamento de uma idéia entre as partes – a do cinema como campo de reflexão e de expressão em sua forma crítica e por meio dos filmes -, mas para se chegar a uma justaposição trans-histórica, em nome de um slogan (Nouvelle Vague Brasileira), sem fundamentação possível, é preciso ignorar um abismo de diferenças de contexto nesse passo. Tanto a atuação dos críticos dos Cahiers nos anos 50 quanto seus filmes na Nouvelle Vague são especificidades de uma dada contingência histórica e cultural, na crítica e na realização, na França daquele pós-guerra, sem nenhum tipo de aproximação com as contingências, os ânimos e as ambições dos críticos e realizadores retratados na Bravo. Os franceses queriam reconfigurar o cinema francês dos anos 50 – e conseguiram em grande parte nos anos 60. Os críticos brasileiros que posam na foto da Bravo, nem isoladamente, nem como grupo, têm essa pretensão (ou as condições para exercê-la, se a tivessem).

Talvez nossas atividades sejam estreitas demais como alcance para figurar nas páginas da Bravo. Para justificar nossa presença lá, é preciso dar uma importância maior às nossas ações, nos classificar com um rótulo ao mesmo tempo nobre e banalizador – não apenas para a Nouvelle Vague, mas também para o grupo que, supostamente beneficiado com a etiqueta, acaba em um papel um tanto patético: o de uma turma de cinéfilos que se acha o próprio cinema. Menos, menos.

Para quem se relaciona com enunciações como sendo enunciados, o título de Nouvelle Vague Brasileira e as fotos dos cineastas nas mãos são mais que enunciações. Como efeito, são os próprios enunciados da reportagem. Para entendedor da comunicação, nós nos consideramos a NV versão BR, a NVBR, e nós nos comparamos aos cineastas das fotos. Eduardo Valente se acha Godard, Felipe Bragança se espelha em Truffaut, Daniel Caetano se considera Varda, Ilana Feldman tem parte com Chabrol, Cléber Eduardo ambiciona ser Resnais e o contracampista Luiz Carlos Oliveira é o próprio Rohmer. A enunciação que se torna enunciado.

Diante dessa lógica da comunicação, não das idéias, as citadas deformações no nível biográfico são de prejuízo menor. O que se torna uma questão, a ser colocada de forma direta, é uma outra coisa, anterior aos erros e aos equívocos: por que, afinal, aceitamos estar na Bravo? Para tentar expressar uma idéia em um espaço regido pelo imperativo da comunicação. Uma idéia de como agimos, como pensamos a crítica, o cinema, enfim, uma idéia de como nos pensamos. Para quê? Para ganhar visibilidade em um espaço com algum nível de legitimação, mesmo se um nível questionado por nós mesmos? Para fazer o quê com essa visibilidade e com essa suposta legitimidade? Haveria pragmatismo crítico nisso? Supondo que sim, outra pergunta: fazer o quê com essa rentabilidade da visibilidade? Que rentabilidade é essa? A que nos serve? Como nos serve?

Não podemos deixar de nos colocar essas perguntas se queremos de fato lidar com os efeitos das imagens. As imagens de nossas ações e de nossas idéias não são nossas ações e nossas idéias. São imagens. Elas dizem mais respeito a quem as veicula do que diz respeito a quem está supostamente veiculado. Quando somos imagens da Bravo, somos da Bravo, somos a própria Bravo. Não somos nossas imagens, nem as imagens são nossas, e isso não  pode ser ignorado. Por nós mesmos, em primeiro lugar.

Junho de 2009


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