O clichê Kim
Ki-Duk
As imagens e as situações
de O Arco levantam uma pergunta acerca da estratégia
de Kim Ki-duk. As opções dramáticas e estéticas desse e de outros
filmes seus (A Ilha, Casa Vazia) expressam uma
forma pessoal do realizador em lidar com a linguagem cinematográfica,
ou demonstram um empenho em buscar efeitos poéticos e metafóricos
para atender a expectativa das platéias cults em torno
do cinema oriental? Em suma, sinal de coerência ou sintoma de
uma fórmula?
Vemos, novamente, os itens
“Kim Ki-Duk”: um sujeito solitário cercado de seus mistérios,
uma relação homem-mulher sempre pela metade, uma convivência
entre romantismo e crueldade, desconforto, isolamento, autismo,
tudo com poucas palavras e cenas de efeito plástico. Como nos
dois outros filmes mencionados acima, O Arco nos introduz
a um mundo estranho, de figuras enigmáticas, que se apresenta
como fabulação, não como representação da realidade. Temos lá
um velho e uma adolescente dividindo dormitório em um barco
de pesca no alto mar, ambos calados (pré ou pós-comunicação
verbal), imersos em um ritual de convivência que inclui um “número”
de arco e flecha, com o qual eles prevêem o futuro de quem solicitar
a previsão. Arco e flecha, masculino e feminino na concepção
budista – símbolos, signos, soma semântico-religiosa, com certo
fetiche na utilização de seus objetos cenográficos (o arco,
o sapatinho, o colar), e fetiche ainda maior pela pele da adolescente
(filmada de forma a termos com ela uma relação quase de voyeurismo).
Toda
a “questão” do filme está na proteção-repressão do velho em
relação à garota, no crescente desejo (sexual) da garota em
conhecer o mundo (pelo sexo, inevitavelmente), na fúria dele
ao sentir a ameaça de perdê-la para o continente, para outro
homem, em um misto de desejo sexual masculino pelas formas jovens
com paternidade terceirizada, numa variação de A Ostra e
o Vento, de Walter Lima Jr – que, por sinal, é incrivelmente
superior. O Arco nutre-se de simbolismos nem sempre decodificáveis,
atrás da invenção de um mundo que, se pode ser indiretamente
reflexo de um mundo fora-da-tela (pelos estados de ânimo do
cineasta diante da sociedade coreana), concentra-se, acima de
tudo, em um universo de prosa poética, sem preocupações com
verossimilhança, mimetismo ou significação para além do encenado.
Não deixa de ser paradoxal
a aposta incessante em uma trilha sonora de uma única música
“orientalógica” – que, talvez pela repetição, adquire um alto
poder destrutivo para os tímpanos. Se opta por apenas dar voz
(pouca) aos personagens secundários, salientando o mutismo de
seu casal de protagonistas, Kim Ki-Duk não parece retirar as
palavras do par central por um desafio cinematográfico (o de
expressar-se apenas com imagens), mas apenas para lhes dar tanto
esquisitice minimalista performática como uma intimidade clandestina
– diluída pelas imagens dos dois na hora de dormir, tipo de
informação que apenas implode o mistério, a ambiguidade, para
fincar bandeira na dicotomia. Uma dicotimia fabular e caricata
entre as figuras do bem e do mal, restando à figura do velho
(misto de tirano com titio) a única possibilidade de ambigüidade
– mesmo assim apenas em alguns momentos, com maior número deles
concentrados nos momentos finais.
Revelando ser menos um
“compositor de quadros” e mais um catalogador de situações “singulares”,
menos um escultor de imagens e mais um administrador de cenas-performances
de arte, Kim Ki Duk precisa da música onipresente, porque, sem
ela, o que ambiciona ser efeito lírico pode se tornar apenas
patético. Já com ela, o que poderia ser patético, em vez de
se tornar efeito lírico, torna-se o clichê de uma reafirmação
constante de identidade estética reconhecível em festivais e
circuitinhos. Não por acaso, nos letreiros finais vemos a assinatura,
agora literal (“12º longa-metragem de Kim Ki-Duk”): o filme
todo parece construído para se chegar à esse crédito do cineasta.