cinemateca cinética
O Atalante (L'Atalante), de Jean Vigo (França,
1934) por Paula Belchior, colaboração
para a Cinética
O bruto é sublime em O Atalante Ao receber
o roteiro original de O Atalante — uma narrativa de amor tradicional —,
Jean Vigo achou mais apropriado que o filme fosse feito por uma “escola dominical”,
e não por alguém com um olhar como o dele. Talvez fosse verdade – se o ideal que
emerge de seu olhar autoral não conseguisse atualizar uma fórmula desgastada e
transformá-la em uma obra-prima. Em O Atalante, ao
mesmo tempo em que o realismo beira o documental (Truffaut costumava dizer que
esse é o tipo de filme em que “pés fedem”), Vigo faz emergir um mundo
repleto de símbolos e fantasias, de felizes coincidências e de estranhos milagres
do dia-a-dia. Do olhar de Vigo surgem o real e o alegórico, o belo e o grotesco,
que coexistem naturalmente, assentados sob uma série de imagens enigmáticas, descontínuas
e líricas. Aqui, o banal dá lugar a uma pulsante teia de imaginações. O
cerne do filme é quase como um conto de fadas. Jean, dono da barcaça L’Atalante,
casa-se com Juliette e os dois vão viver navegando pelos canais de Paris. Apesar
de terem uma forte ligação erótica, o relacionamento limitado àquele pequeno espaço
torna-se difícil para a moça que, seduzida por um vendedor ambulante, acaba fugindo
para descobrir os prazeres da vida na cidade grande. Desesperado, Jean é prontamente
socorrido por père Jules — seu imediato e uma espécie de fada-madrinha
burlesca — que sai em busca de Juliette pelas ruas de Paris. A
partir de um argumento bastante comum, resta à imaginação de Vigo rejeitar o moralismo
para não cair na pieguice tão recorrente a esse tipo de filme. Seu olhar fortemente
marcado pelo surrealismo combina momentos de estranha graça, conferidos pelas
súbitas mudanças de humor de Dita Parlo (como Juliette)
e a presença marcante de Michel Simon (como père Jules), a situações
contraditórias à realidade, como a família que acompanha o cortejo que mais parece
uma marcha fúnebre, ou o ambiente um tanto sombrio para um casamento. Esse olhar
é acentuado pela característica elíptica do roteiro, que apesar de não ser o foco
principal do cineasta, ajuda a criar um ambiente aberto à imaginação. Em contrapartida,
o filme abre espaço para uma das constantes preocupações de Vigo: um viés naturalista
sobre a difícil situação econômica e social da década de 30, expressa na cena
em que Juliette integra uma fila real de desempregados. E à distância que confere
o documental, o fotógrafo Boris Kaufman, da mesma forma como costumava fazer seu
provável irmão Dziga Vertov, traduz em uma iluminação sombria e nebulosa, o silêncio
da dura realidade e da desilusão da cidade grande. Mas não
devemos nos esquecer que, em O Atalante, o real, a ordem, são apenas o
pano de fundo para a descoberta anárquica do amor, do prazer, das relações de
intimidade e do contato com o outro. Em Vigo, o grotesco exalta o belo, o selvagem
sublima o sensível e a autoridade anula o amor. A verdade, para Vigo, não está
na razão, mas nos sentidos. O humanismo e exotismo do velho père Jules,
a incrível ânsia pela descoberta do prazer da inexperiente Juliette e as tentações
da Paris que o sedutor camelô (vivido por Gilles Margaritis com graça e leveza
típicas da vaudeville) apresenta para conquistar Juliette, sobrepõem-se
à autoridade e submissão de um marido que tenta anular as fantasias e os desejos
da própria esposa. A chave para a felicidade está na carnalidade, na abundância,
no exotismo encontrado na selvageria dos gatos e na cabine do truculento père
Jules. Não no marido. Este, só possuirá o amor de Juliette se conseguir aceitar
todas as faces da vida e enxergar sua amada com os olhos do coração (se tais visões
podem não soar tão originais hoje, vale lembrar que estamos falando de um filme
de 1934). Para
naturalizar todas essas nuances, Vigo recorre ao uso da câmera como fonte primária
da história. Cenas de humor, fantasias, cruezas e descobertas são registradas
com uma fluência que só uma câmera que se move discreta e à distância consegue
captar. Ao utilizar a câmera como um “registro da realidade”, Vigo consegue extrair,
entre os fotogramas, um significado que vai além da própria significação da imagem.
E isso vale até mesmo nos raros momentos de close-ups, onde a câmera atua
com sua própria função de criar uma imagem, e não de se tornar a visão da personagem.
Essa distância produz uma opulência estilística que afirma toda a imaginação produzida
por Vigo. E, compactuada pela justaposição da imagem, cria uma nova imagem invisível,
que nos faz pensar que tudo é naturalmente possível.
Natural também é a poesia inerente por todo o filme. Basta pensar na cena que mostra Juliette
brincando de descobrir o rosto de seu amado debaixo d’água — uma das grandes metáforas
do verdadeiro amor na visão de cineasta; ou quando a fotografia de Kaufman faz
Juliette “flutuar” sobre a barcaça, em uma das cenas mais belas do filme. Ou ainda
a trilha lírica e minimalista de Maurice Jaubert, compositor de Jean Vigo e Marcel
Carné, que inova ao intervir musicalmente com ingredientes sonoros que não apenas
a música. Quarto e último filme dirigido por Vigo, O Atalante
é uma daquelas obras-primas que, após ser mutilada pelos produtores (e exibido
sob o título La Chaland Qui Passe — nome de uma música francesa em voga
na época), só conseguem ser reconhecidas na posteridade. É um filme que nos prova
que, se fórmulas existem para serem seguidas, constituir modelos, enunciar regras;
elas também existem para serem quebradas. Reformuladas. Evoluídas. No entanto,
só os que possuem uma visão à frente do seu tempo conseguem romper isso. E dentre
esses, meu caro leitor, certamente está Jean Vigo.
editoria@revistacinetica.com.br
|