in loco
Diário de Bordo - Oberhausen,
parte 2
por Felipe Bragança
Esta é a segunda e última parte de minhas anotações
durante o Festival de Curtas de Oberhausen 2006. Mais filmes,
outras questões , outras conclusões. Vamos a alguns títulos apresentados:
A Moment of Love, de James Lee
Uma pequena crônica conjugal de dois jovens começando uma vida
juntos em Cingapura me chamou a atenção hoje: o que impressiona
é como, na narrativa simples e direta, o diretor James Lee consegue
encontrar um tempo e um tom que é ao mesmo tempo latejante/incômodo,
e doce/positivo. Talvez apenas mais um exercício da linhagem Tsai
Ming-liang (elementos como a água, o silêncio, os cigarros estão
todos lá) se não fosse um surpreendente sentido de feel good
rock and roll que o filme tira da manga. É que o faz especial.
Mapa, de Amit Dutta
Em um panorama de filmes em que a contenção é a regra, o exagero,
o excesso de Mapa (filme “de formação” do diretor indiano)
aparece quase como um OVNI. Cenografia de farsa como a de um musical
de bollywood, misturada a uma narração de enigmas e a imagens
iconográficas que misturam elementos de natureza com objetos plásticos.
Não é um filme do tipo que confortavelmente se coloca no bolso,
se gosta e pronto. Mas o tipo de presença na tela que, por sua
falta de pudor, sua poesia over, sua inflação de signos
consegue ser ao mesmo tempo pregnante e bizarro. Uma espécie de
altar cinematográfico contra o qual a câmera se choca, encontrando
objetos desenhados por uma iluminação de cores berrantes, diretas,
concretas. Um sentido de imagens que, nas mãos de um olhar contido,
seria apenas um filme lírico comum.
A Rapariga da Mão Morta, de Alberto Seixa
Santos
Uma pequena fábula de suspense infanto-juvenil do veterano diretor
português, construída em torno dos afetos de uma menina
de 17 anos que não tem uma das mãos. A dramaturgia simples, diálogos
diretos sobre os sentidos pensados, construída em um clima enevoado,
mas encantador, fazem do filme um jogo muito bonito com gêneros
cinematográficos tradicionais – entre o conto de fadas e o mistério.
Um sobrevôo ingênuo que lida com pequenas possibilidades de encantamento
em torno da imagem icônica da menina bonita que usa uma mão de
borracha, seu olhar por Lisboa, pelo tempo certo na construção
dessa ingenuidade.
Me first, de William Owusu
Filme pessoal, simples, de um lirismo romântico comum se não fosse
o curioso sentido de intimidade que o diretor queniano consegue
construir filmando seu próprio corpo, sua própria voz, numa narração
amorosa ficcional e confessional. Uma espécie de filme para web
cams, de filme-blog, de anotação em agenda juvenil. Mas que
tira sua graça dessa brincadeira. Um filme de bolso.
Lancia Thema, de Josef Dabernig
O sentido do romantismo alemão recorrentemente volta à tona nos
filmes do Festival. O encontro, o choque entre o humano e o natural,
ou o “naturalizado" (cidades, países) é um interesse de Oberhausen
– que, em Lancia Thema encontra uma espécie de experiência
direta. São minutos seguidos de um homem que dirige seu carro
por paisagens austríacas, parando de tempos em tempos e tirando
fotos de seu carro na paisagem. Ao mesmo tempo em que vemos a
repetição de seu gesto auto-complacente, a câmera de cinema flutua,
se livra, e filma as paisagens em torno de si, encontrando pedras,
construções abandonadas, paisagens vastas. É um jogo de experimentação
de imagens, brincando com a sonoridade de uma ópera romântica,
levando ao cabo uma questão que parece estar no foco do interesse
do Festival: que tipo de narração, encantamento visual e experiência
o cinema ainda pode dar? O que pode ainda o visual? Lancia
Thema não responde, mas acorda a pulga atrás da orelha, com
uma proposta um tanto cínica, um tanto brilhante.
Civil Status, de Alina Rudnitskaya
Outro
filme de observação. Agora no sentido de uma rica construção da
burocracia russa nos mínimos detalhes de casamentos, divórcios,
nascimentos. O dia-a-dia de um cartório serve de fragmento de
um espaço onde a liberdade e os desejos individuais se driblam
e se mediam através de uma máquina institucional. Um olhar como
o de Wiseman sobre as instituições norte-americanas, o mesmo desejo
de acúmulo de experiência e construção que busca a imparcialidade
no excesso de possibilidades de reflexão. Um filme firme, bem
fincado numa cartilha, que realiza bem seu projeto e marca com
alguma doçura o que poderia ser um cinema de rancor nas mãos de
um olhar afoito com ser incisivo.
Love, de Vlatko Gilic
Filme visto na mostra paralela Radical Closure, uma retrospectiva
de filmes que tratam de situações de aprisionamento, controle
estatal, limites corporais. Love narra (?) uma tarde de
trabalho na vida de um operário iugoslavo na construção de uma
ponte e a visita de sua mulher. Deixar observar o trabalho físico,
a relação especial homem/máquinas, a relação de romantismo e crueldade
que o filme consegue desenhar sem palavras. As escalas da mulher
que chega com sua cesta de almoço diante das grandiosas estruturas,
a tranqüilidade do afeto. Em um dos usos mais eloqüentes e mais
deliciosos do zoom que já vi, o filme constrói essa tese
sem nenhuma imposição de narração, mas através de um realismo
da contenção levado ao limites do falso, construído pela alternação
seca dos planos. Conseguindo, nas entrelinhas (como seu titulo
indica), um “cinema de amor”, cujo foco se dá no afeto que desafia,
sutil e sem arroubos, o que parecia ser uma paisagem de máquinas.
Instructions for A Light and
Sound Machine, de Peter Tscherkassky
Talvez o filme mais consistente em termos de projeto, de
artesanato, de presença na tela. Tscherkassky, mestre austríaco
da manipulação da película e da construção de jogos físicos de
luz, faz aqui uma homenagem direta e uma desestruturação do cinema
de western através da desconstrução física de uma sequência
de ação. Um enfrentamento onde o rosto de Eastwood é transformado
em protagonista de um caos de luz e som, que parte dos ícones
do faroeste para ir em direção aos elementos mais básicos do movimento,
do som, da luz. Uma aula poética sobre a fisicalidade do cinema,
seu teor superficial, sua fragilidade de suporte. O título do
filme, não à toa escolhido para fechar o festival no último programa
da competição, é,d e alguma forma, uma carta de intenções que
o próprio festival apresenta. Luz e som. Enfrentamento e gênero.
Ação e instalação. Oberhausen.
* * *
Para outras informações, sobre os filmes premiados,
sobre os filmes exibidos (lista que inclui os brasileiros Maré
Capoeira, de Paola Leblanc, premiada na mostra infantil; Dormentes,
de Joel Pizzini; Tudo o que é sólido pode derreter, de
Rafael Gomes; além do já citado Mestre Humberto, de Rodrigo
Savastano), fica aqui a dica do site
do festival.
* * *
No mais, um Festival que marca espaço pela coragem
e maturidade com que lida com uma série de questões da linguagem
cinematográfica hoje, passando de maneira já desafiadora por motivos
estéticos da contemplação, das possibilidades de narração e instalação
de imagens que, no Brasil, mesmo em alguns festivais, às vezes
parecem perdidas em meio a preocupações menos “cinematográficas”.
O que se encontra aqui é a agradável sensação de um diálogo possível,
de maneira não hierárquica, entre diferentes possibilidades de
investigação – onde o discurso do “bem feito” não tem espaço.
Um cinema que não se quer “de arte” como celebração de “tendência”,
nem reiteração de beleza posta. Mas uma coleção de estilos que
se esbarram, em uma vontade comum de encontrar formas de
temporalidade pungente, de construção de espaços físicos na imagem,
de um jogo entre narrar e instalar. Nesse redemoinho, algumas
bombas terríveis, algumas coisas lindas, outras irregulares. Mas
um sentido de energia cinematográfica especial – ainda mais se
focarmos na linguagem do cinema digital e no uso das pequenas
câmeras. Caminhos que, para um cineasta de um país como o Brasil
(pobre até a medula, sem sistema de distribuição relevante, sem
público), choca como inspiração e como desafio. E se, por vezes,
a afirmação da diferença de linguagem resvala no clichê do "experimental",
os filmes mesmos, por si só (e como são respeitados, vistos e
discutidos aqui!) se insurgem em direção a desalinhos.
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