in loco - cobertura dos festivais
O Gerente, de Paulo Cezar Saraceni (Brasil, 2011)
por Filipe Furtado

Elegia ao tarado

Se O Gerente é um filme evidentemente crepuscular, seu desejo de cinema é de uma jovialidade que poucos filmes de cineastas novos encontra. O que nos apaixona em O Gerente é, primeiro, a disposição de Saraceni em abraçar toda e qualquer idéia que lhe surgir, seja colocar Djin Sganzerla para andar pelo centro do Rio despreocupado com os extras descaracterizados para o filme de época, seja homenagear Francisco Almeida Salles numa longa seqüência “gratuita”; ou ainda colocar uma série de senhores numa festa dos anos 50 a homenagear o apoio da Petrobras ao cinema brasileiro hoje.

A relação do filme (e do diretor) com o cinema pode ser vital, mas ele jamais lhe pauta em excesso. O Gerente não deve nada ao cinema, só ao universo do seu autor – e é muito mais jovem e atual por conta disso. É por isso mesmo que, apesar de ser sem dúvidas um filme sobre o Rio da juventude do cineasta (no debate sobre o filme, no dia seguinte à exibição, Saraceni fazia questão de começar cada intervenção relembrando de que lera o conto original de Drummond em 1952, quando ainda jogava no futebol juvenil do Fluminense), ele jamais fede a formol como tantos outros lamentos nostálgicos. Um pouco como nos filmes de Manoel de Oliveira, aos quais por vezes sugere, a energia de O Gerente o envolve de uma vitalidade própria.

Samuel é gerente de banco, muito mais interessado na carne das senhoras da sociedade carioca do que nos juros e créditos dos seus maridos. Fetichista, apaixonado por beijar as mãos das suas senhoras, Samuel é progressivamente tomado por uma compulsão canibal; beijar aquelas belas mãos já não cobrem sua tara, é preciso mordê-las, arrancar-lhes os dedos na dentada. Samuel é o protagonista deste mais recente longa de Paulo Cezar Saraceni e o veterano cineasta constrói O Gerente à sua imagem e semelhança. A primeira metade do filme é composta por uma série de seqüências de sedução (com Ney Latorraca num trabalho físico excepcional), e a segunda parte é marcada por momentos de profundo mal-estar (com Ana Maria Nascimento aos poucos sufocando toda ação). Seu universo e psicose são primeiro erguidos, para depois sua tragédia se anunciar.

De fato, mesmo que O Gerente tenha muitos momentos de humor, ele é um filme de horror – aquele filme de horror tipicamente brasileiro que Jairo Ferreira definiu tão bem como berço do nosso cinema político mais vital e relevante. Isso é algo que fica claro na forma como o filme equilibra o humor e o mal-estar, como quando o psiquiatra interpretado por Paulo César Pereio oferece a Latorraca uma série de objetos para morder, até lhe oferecer uma mão de manequim que o gerente tenta recusar, mas não consegue resistir. É a elegia a um tarado sem lugar, cuja forma peculiar de apreciar a beleza só pode ser apreciada com a distância da morte (ele está morto antes da trama começar, detalhe aparentemente irrelevante para a narrativa, mas essencial para o tom do filme). Um tarado que se descobre sem lugar – chega a ser exilado – e sem tempo.

Por toda a aparente nostalgia de O Gerente, estamos num filme perdido no tempo, cuja tragédia transpassa não pertencer a lugar nenhum. Sua agonia é menos decadentista, e mais a que vem do reconhecimento de que sua existência só faz sentido como cinema. Poucos cineastas seriam capazes de construir um filme em torno de um personagem como Samuel, tarado-vampiro-antropófago, quanto mais se identificar de forma completa; mas na sua tragédia, Saraceni identifica a sua. Mais do que qualquer outro filme, é O Signo do Caos, de Rogério Sganzerla, ao qual O Gerente mais se aparenta. O Gerente e O Signo do Caos são dois filmes de horror – porque todos os filmes honestos sobre o cinema brasileiro serão sempre filmes de horror – que caminham à sua própria maneira ao apocalipse. No filme do Sganzerla, é uma condenação à danação eterna após o crime iniciar de trair o gênio; aqui, é o auto-reconhecimento de Samuel trancado na sua própria versão de casa assombrada, com uma mulher ao qual ele está inevitavelmente ligado, a vida aos poucos lhe abandonando o corpo a esperar a oportunidade da última mordida. O Gerente é um filme de terror porque é um filme assombrado pelo mundo exterior. Assim como seu protagonista, o longa de Saraceni reconhece o completo desinteresse do mundo pela sua existência.

Só que se o filme de Sganzerla é um discurso direto sobre o cinema brasileiro, O Gerente, pelos seus próprios caminhos, é a elegia a um cinema poético e único – o do próprio Saraceni –, que tenta, como pode, ainda existir, mas que permanece isolado e perdido, completamente deslocado no tempo. Cinema este que segue o nosso mais injustiçado e subestimado, obra bem maior que o duo Arraial do CaboPorto das Caixas, no qual freqüentemente é encerrada. Ao final, quando ouvimos a voz do próprio cineasta berrando para que seus atores se apressem para o desenlace, para que Samuel possa fazer valer sua tara uma última vez. A vitória de O Gerente é que ele faz valer este cinema de Saraceni mais uma vez. Deslocado, talvez; mas, a despeito de sua amargura, um cinema jovial e vivo.

Janeiro de 2011

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