in loco - cobertura dos festivais
O Invasor (The Invader), de Nicolas Provost (Bélgica, 2011)
por
Pedro Henrique Ferreira
Novo
mundo
A bela sequência
inicial de O Invasor é uma espécie de prólogo
simbólico do embate que irá se desenrolar mais adiante.
Da vagina de uma loira numa praia de nudismo, a câmera recua
e segue seu desfile por uma espécie de Éden paradisíaco,
até que ela finalmente se depara com um negro ofegante,
que parece emergir do oceano, a ajudar um companheiro falecendo.
Do embate entre o olhar da loira e do negro, armado numa relação
campo e contra-campo, emerge uma química de desejo corporal,
culpa e pena. O negro africano quer chegar ao paraíso dos
brancos europeus, mas esta idealizada integração
não pode acontecer. Há forma mais sintética
e exata de se colocar a natureza do problema?
Em seu primeiro
longa-metragem, O Invasor, Nicolas Provost se aproxima
daqueles que talvez sejam os tenas europeus do momento: imigração
(e consequentemente estrangeirismo e xenofobia) e o confronto
do africano com o homem branco (e, portanto, culpa européia
e busca por reconciliação). Contudo, a abordagem
do diretor belga evitará a reiteração dos
velhos antagonismos
que protagonizam estes embates para formulá-los em outros
termos, armando uma narrativa que abandona todo resquício
de culpa, preconceito ou revanchismo, para pôr no mesmo
saco os brancos e negros, os estrangeiros e os locais. Repentinamente,
o projeto não é mais investigar a distância
inaugural entre ambos ou os desenlaces históricos que levaram
este abismo a se acentuar. É, sim, investigar justamente
os anseios que os une num mesmo espaço e, desta forma,
descortinar os parâmetros exatos deste espaço paradisíaco,
deste mundo europeu onde ambos, agora, se encontram juntos. O
mundo africano, por sua vez, é um fenômeno do passado,
abstraído por completo. Há até uma remissão
a ele numa conversa de telefone, mas o outro lado não surge
em plano: é como se a África originária –
seu espaço geográfico e sua cultura mesmo –
não mais existissem. E, a partir do momento em que falece
seu amigo doente, a última ligação que havia
com esta ancestralidade africana, "Obama" (Isaka Sawadogo)
se torna cada vez mais um homem de Bruxelas, alguém inteiramente
identificado com aquela cidade e disposto a tudo para adentrar
e encontrar seu espaço naquele universo.
A estetização das ruas, dos néons e das luzes
de Bruxelas, que segue um videografismo latente, se torna parte
fundamental do repertório de Provost para criar uma dupla
relação do encantamento com a cidade, e ao mesmo
tempo uma problematização, um certo sentimento de
que esta nova vida de Obama, por sua origem, simplesmente não
pode dar certo. Isto acontece porque, ao mesmo tempo em que acompanha
as desventuras de seu personagem principal, O Invasor
não é absolutamente complacente com o africano que
quer se tornar europeu, criar vínculos e prosperar naquele
mundo. De uma verve balzaquiana (é claro, atualizando
o problema), o herói é tão culpado quanto
o mundo que lhe açoita, pois no fundo é seduzido
por ele. Isto é, a partir de certa altura, aceita tornar-se
parte daquele jogo.
E
este mundo não pode lhe aceitar perfeitamente. Tal qual
ocorre em Vênus Negra, de Kechiche, o Éden
europeu o aceita tão somente para se utilizar de seu corpo,
seja num sentido de mão-de-obra, ou seja pelo sexual. Pois
o que torna alguém bem sucedido em Bruxelas não
é ter dinheiro ou ser objeto de ensejo sexual, mas pertencer
a uma longa rede de contatos na qual Obama é e sempre será
um estrangeiro distante – é o que vemos de forma
clara na irônica cena na exposição de quadros.
A arte européia e todo universo no qual ela se insere,
uma arte a ser sancionada num museu, é algo tão
distante da genealogia deste negro que a empreitada de adentrá-lo
parece fracassada por princípio. Ao tomar-se conta do paradoxo
no qual se inseriu, Obama se volta para uma vingança feroz
contra aqueles que lhe levaram para lá. E os assassina
justamente no instante em que eles se encontram com mulheres estrangeiras
num ato de prostituição.
Mas a vingança
consumada ou a culpa européia do processo civilizatório
(que foi, no fundo, um processo de violenta sedução)
já não servem de nada: o paradoxo está armado,
e O Invasor o põe de forma ostensiva e certeira.
É bem possível que o olhar do personagem em direção
ao espectador tenha sempre significado, além da quebra
da diegese ou da “quarta parede”, como a necessidade
consciente de se lançar ao espectador um confronto e uma
indagação. Na impressionante seqüência
final, uma que liga diretamente ao tom mesmerizante e fantasioso
da inicial, o negro nu, deitado ao leito europeu, nos olha. Peremptoriamente,
Provost formula o paradoxo de seu mundo, e indaga se o europeu
está disposto a aceitar este fetiche do africano que, no
fundo, teria sido o europeu mesmo que criou. Neste momento, talvez
seja esta mesmo a pergunta a ser feita.
Outubro de 2011
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