in loco - III jornada de cinema silencioso
“Oi, prazer! Eu sou o cinema”
por Lila Foster

O ar comum era de novidade e encantamento em meio ao calorão da sala BNDES ao longo da Jornada do Cinema Silencioso. Muita gente ria, se espantava, apontava para a tela e fazia comentários em voz alta. Uma ou outra pedia silêncio solicitando um respeito, que não cabia naquele momento, ao culto cinematográfico. Foi assim a reação do público que lotou a sessão de 74 filmes dos Irmãos Lumière – uma reação não tão diferente, guardadas as devidas proporções, de como deveriam ser as sessões dos filmes na virada do século XIX para o século XX.

Se a sessão não serve como evidência única e final, podemos pelo menos especular que existe um ar de novidade nesses filmes independente do tempo transcorrido. A primeira delas é como esses filmes tão antigos trazem um diálogo intenso entre o cinegrafista, a câmera e aqueles que estão diante dela. Porque embora o cinema seja um derivado da fotografia, não existe qualquer ética do retrato ou da lógica da invisibilidade que viria posteriormente, de uma imagem que se constrói independente da forte presença do aparato. E é um absurdo estar diante de um olhar que não existe e nem poderá existir no mundo atualmente dominado e mediado a todo o momento pela imagem mecanicamente, ou digitalmente, produzida. Olhares impossíveis que sobrevivem pela capacidade que o cinema tem de perpetuar o registro.

A coleção desses pequenos olhares já é um encanto em si: um ator no final de uma pequena encenação olha para a câmera e parece perguntar – “acabou?” –; ou um feirante no extremo oriente que olha de longe e acena para entender – “estou sendo alvo dessa caixa com uma manivela?”. O diálogo reforça também que aqueles que observam o aparato com curiosidade acenam para a câmera e não para o espectador. As cenas cômicas de Alice Guy, apresentadas na sessão Imagens Francesas de Sieurin, também trazem o mesmo tipo de participação. Os atores e os “retratados” participavam do “evento filmagem”, marcando o contato com a novidade que se apresentava diante dos seus olhos. A filmagem era um evento em si, independente da parcela de encenação que havia, e a brincadeira surge de uma espontaneidade, que hoje nos parece fogir totalmente. O evento firmava todos os envolvidos no tempo presente, quer dizer, o cinema era a própria experiência e as ações que ali de desenrolavam não prejudicavam o produto final, pois o que se ambicionava não era representação (ou um pacto com o espectador), mas sim a re-apresentação dessa experiência em outro espaço e tempo. 

O conjunto de filmes dos Lumière, compilados pelo CNC (Centro Nacional de Cinematografia Francês), infelizmente sem os seus respectivos títulos, traziam os clássicos, os filmes domésticos, as pequenas gags, e os filmes das terras distantes com as pirâmides do Egito, um mercado no Oriente Médio e uma celebração tradicional na China. Todos pautados pela lógica do acontecimento, de captar a ação diante do quadro. Os últimos propiciavam uma experiência diferente ao trazer essas terras distantes e exóticas para perto do espectador europeu. Essas imagens, que saciavam o desejo de um olhar geográfico em busca de uma expansão do globo através dos olhos, eram pautadas pela curiosidade, mas, também, por uma espécie de imersão em outro espaço, um deslocamento sem sair do lugar. O encantamento vinha não só do cinema em si, mais realista com o acréscimo do movimento, mas do acesso sensorial ao mundo que só habitava a fantasia desses espectadores.

Para o espectador contemporâneo, a novidade é, além de geográfica, histórica; um deslocamento no tempo e no espaço que somente intensifica o seu impacto. Para nós, o passado também surge como projeção fantasmagórica: ele nos é tão visualmente inacessível como a China era para muitos europeus antes da invenção do cinema. Nesse sentido, estamos no mesmo lugar que os espectadores do início do século XX: sentimos-nos saciados pelo olhar, pela re-apresentação de um mundo que já não existe.

Curiosidade e prazer são, portanto, sensações que definem esta experiência visual que sobrevive ao tempo, pois antes de ser cinematográfica, é cultural. Se os filmes dos Lumière são a primeira fase de uma cultura visual cada vez mais calcada na idéia de um realismo que emula a sensação de experiência, a contemporaneidade compartilha através do desenvolvimento tecnológico um ímpeto similar. As imagens de satélite do Google Earth, por exemplo, podem ter a sua funcionalidade como produto. Mas, o que dizer de um programa que nos apresenta o globo inteiro e nos transporta para lugares com a simples inserção de um endereço? Não bastando a curiosidade do olhar geográfico, que vai da Terra, passando pela Lua e por Marte, algumas cidades podem ser visitadas com um olhar e posicionamento que simula a própria experiência. É possível andarmos pelas ruas de Amsterdam, olhar para cima, para baixo e dar uma panorâmica com um simples movimento do mouse. Curiosamente, o programa traz a possibilidade de ver imagens de satélites antigas permitindo acompanhar a modificação dos espaços, nos reapresentando esses espaços historicizados e, de alguma forma, já mortos. 

A modernidade apresentada nos filmes de Lumière e de Alice Guy é, antes de tudo, sinal de um desejo de “mundo”, um conceito que engendra passado, presente e futuro. Não por acaso, os dois retrataram a Exposição Universal de Paris em 1900: o mundo e a tecnologia em um só lugar, o reconhecimento dos feitos do passado e o lançamento dos ideais para o futuro. O desejo de encurtar as distâncias e de descoberta do globo pautou as grandes invenções da modernidade e é tão antigo quanto o medo da morte. O cinema e as novas tecnologias de simulação da experiência se situam neste mesmo eixo: o prazer da descoberta e o assombro do passado revisitado. Imagino que talvez seja esse um dos motivos do encanto e do alvoroço vivido naquela sessão na sala BNDES.

Setembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br

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