in loco - cobertura dos festivais
Sob o risco da incompreensão
Oma, de Michael Wahrmann, e algumas companhias
por Ilana Feldman

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei na medida do impossível
(“Cogito”, Torquato Neto, 1973)

Dentre todas as maravilhas que poderiam ser ditas sobre o festival forumdoc.bh.2011 – festival do filme documentário e etnográfico,cuja última edição em dezembro de 2011 marcou os 15 anos do evento em Belo Horizonte, chama atenção a ousada e arriscada seleção da Mostra Competitiva Nacional desse ano. Mais do que bons filmes, mais do que tensionar e levar ao limite o que se chama de documentário (e não cabe aqui tomar parte nessa polêmica), a seleção parece ter acolhido filmes que trazem consigo “bons problemas”, isto é, filmes que problematizam, de maneira extremamente autoconsciente, o modo como suas escrituras e estruturas são afetadas pelas forças que os atravessam – e por fim que os geram. Nesse panorama, composto por curtas, médias e longas-metragens, ainda que bastante diversos (e não separados por duração), é notável o predomínio dos filmes que se centram nos sujeitos filmados (indissociáveis das evocações da memória) e nas relações e tensões intersubjetivas (entre realizadores e personagens) que ora se forjam a partir do filme ora forjam o próprio filme.

Mas, o que poderia parecer simplesmente mais do mesmo, mera e repisada expressão de uma hipertrofia da subjetividade acompanhada pela inflação da boa e velha retórica testemunhal – contexto cultural em que o documentário, liberto dos modelos sociológicos e das estruturas sociais, parece ter a obrigação de restituir aos sujeitos filmados uma singularidade um dia perdida –, é deslocado de maneira desconcertante. Ainda que esses deslocamentos e opacidades dos sujeitos apareçam com intensidades variadas nos longas, especialmente em Santos Dumont: pré-cineasta? (2010), de Carlos Adriano, Diário de uma Busca (2010), de Flávia Castro (ganhador do prêmio de Melhor Longa-Metragem nacional) e Laura (2010), de Fellipe Barbosa, é nos curtas que os bons problemas furam os olhos, pois suas forças expressivas encontram-se na medida mesma dos problemas, dos afetos e dos assombros que geram.

Do provocativo documentário sobre o artista Paulo Bruscky, em As Aventuras de Paulo Bruscky (2010), realizado integralmente com imagens do Second Life, por Gabriel Mascaro, à sintomática apropriação, pela montagem, de pornografia via internet, em Filme pornografizme (2011), de Leo Pyrata, passando pela beleza de Ovos de Dinossauro na Sala de Estar (2011), de Rafael Urban, pela inteligência graciosa de Vó Maria (2011), de Tomás von der Osten, e pelo assombro de Oma (2011), de Michael Wahrmann, a questão alteridade no documentário é radicalmente problematizada, resistindo, com seus efeitos de presença, a ser interpretada, domesticada e subordinada. Se impasses e ambivalências atravessam de formas diversas os filmes citados, os três últimos recusam a febre biográfica contemporânea, operando deslocamentos importantes no campo das retóricas testemunhais e confessionais e trabalhando a partir da opacidade do relato, seus incômodos, seus limites e suas lacunas.

Ovos de Dinossauro na Sala de Estar se empenha por formalizar, por meio de enquadramentos estáticos e de planos autônomos, a memória de Ragnhild Borgomanero sobre seu falecido marido Guido, com quem reuniu, em Curitiba, uma enorme coleção particular de fósseis e vestígios. A declamação impostada de Ragnhild, contida por enquadramentos quase museológicos e por uma sensação de que o próprio tempo da narração fora sedimentado, fossilizado, revela que algo quer explodir na contenção. Afinal, a beleza da rigidez da composição e da limitação (no sentido do recorte preciso) do relato é atravessada por uma loucura: a loucura do amor daquela mulher (que chegou a fazer cursos de Photoshop e Première para dar movimento às fotografias de Guido); a loucura dos ovos de dinossauro do marido. Ao final, um Bach explosivo.

Já em Vó Maria tem-se três gerações, neta, bisneta e tataraneta, cujas narrações sobre a imagem fotográfica de Vó Maria são paralelas a um movimento de câmera que vai do extremamente próximo da imagem (quando quase nada se pode ver, além dos poros, das sombras e manchas na imagem) ao mais distante, quando enfim a integralidade da imagem de Vó Maria se forma e completa. Porém, paradoxalmente, a distância necessária para que se possa vê-la é também a condição para que se possa esquecê-la. E assim a imagem de Vó Maria, quando completada, vai docemente desaparecendo, enquanto a voz da jovem tataraneta diz um “Sei lá, eu não sei nada sobre ela”.

Se, como diz uma das máximas comollinianas, “filmar é filmar relações, inclusive as que faltam”, é porque, em Ovos, em Vó Maria e em Oma, como veremos adiante, só se pode partilhar uma experiência pelo que há nela de intransferível, de incompreensível e, no limite, de impossível. Mas é Oma, de Michael Wahrmann (ganhador do prêmio de Melhor Curta-Metragem nacional), o filme que por hora receberá um olhar mais detido.

“No entiendo”

Nascido de uma relação familiar aparentemente marcada pela incompreensão, ambiguidade e aspereza, Oma (“avó” em alemão) é sem dúvida um filme problemático, desses que não são feitos para se propriamente “gostar”. À primeira vista, esse encontro tão desencontrado entre neto e avó, no qual ela fala alemão e ele não entende, ele fala espanhol e ela não escuta, causa tremendo desconforto e imenso incômodo: enquadramentos “descuidados” e mesmo “deformantes” da avó, somados a mentiras ditas pelo realizador-personagem no momento da filmagem, podem conferir ao filme uma leitura fortemente negativa, como se tratasse de um projeto antiético, de um filme-trapaça ou coisa que o valha. Porém, ao longo dos 22 minutos de filme, algo se transforma, definitivamente. E, pouco a pouco, tudo o que há ali de supostamente incômodo, e até mesmo desrespeitoso, vai se transformando em um afeto difícil, instável, cruel em alguns momentos, porém imensamente belo nesse desencontro de linguagens, nessa dificuldade de tradução (que o filme faz questão de assumir ao não legendar o que diz a avó em alemão) - e, por fim, nessa impossibilidade de apreensão do outro, a não ser como radical opacidade.

Se há então uma dimensão negativa que pode condicionar a recepção do filme (e, de fato, a negatividade é condição da linguagem e ontologia da imagem), essa percepção se dá como ponto de partida, mas não de chegada. Assim, o incômodo não pauta uma recusa, a recusa das implicações ditas éticas de determinado projeto estético. De modo contrário, em Oma o incômodo pauta um engajamento ainda mais vigoroso nos impasses e ambivalências que pontuam essa relação entre neto e avó - uma avó que está ficando quase cega e quase surda, fisicamente frágil dada à idade avançada, mas que nem por isso deixa de resistir ao olhar do neto e a seu afeto dominador (visto que é ele quem detém a posse do discurso e da câmera).

É então em meio à “brutalidade” de alguns enquadramentos, excessivamente próximos com a câmera quase colada ao corpo da avó, é então em meio à “brutalidade” da impaciência do neto, que precisa falar alto para que a avó possa escutá-lo, que Oma resiste, se recusa e, em diversos momentos, inverte a relação com o neto, a princípio de “dominação”: fala alemão em vez de espanhol, sabendo que o neto não a compreende; pede para ser fotografa na varanda, determinando esses momentos; e posa para a câmera na cozinha, deliberadamente encenando tomar um chimarrão.  

Nessa espécie de negociação desigual (qual negociação, no âmbito de um filme, não seria desigual?), Oma parece inverter sutilmente o jogo, ora ignorando a mediação imposta pela câmera, ora sendo extremamente consciente dela; ora escolhendo não ver certas coisas e ver outras, ora não compreendendo certas situações e compreendendo outras. Enfim, e de modo ainda mais pungente, Oma, conscientemente ou não (pois tentar identificar suas oscilações de consciência é intenção tão problemática quanto prepotente), parece não querer se fazer de todo entender nem apreender – em uma recusa particular de alguém que resiste sem abrir mão da relação. Assim, nesses pequenos gestos, nesses pequenos desencontros entre línguas e linguagens, nessas lacunas e opacidades do testemunho (uma recusa, também do filme, a essa “violência biográfica” tão sedimentada culturalmente), Oma exerce o que chamaria Levinas de “a resistência dos que não têm resistência”. Se Oma resiste a partir de sua própria fragilidade, é o neto, jovem, grande, com seus 25 anos e sua voz determinada, desprovida de hesitação, quem vai, pouco a pouco, mostrando-se cada vez mais frágil e apequenado diante de sua própria impaciência (ele precisa falar alto e não entende alemão), de seu egoísmo (a avó pede que ele fique, mas ele está de férias e vai à praia e, quando volta, precisa logo retornar ao Brasil) e de sua culpa (ele não volta e, quando o faz, já é tarde demais).

Desse modo, o poder exercido sobre uma figura aparentemente destituída de poder tem seu vetor invertido e quem é problematizado e julgado, quem se torna “personagem” de seu próprio “personagem”, é o realizador, que, em sua arrogância e tom, em suas mentiras e ambigüidades (ele diz que vai desligar a câmera e não desliga, que aquele registro é “coisa minha”, ao mesmo tempo em que demonstra a intenção de torná-lo público, quando diz que o filme vai se chamar “Eu não falo alemão”), acaba revelando a fragilidade de quem não suporta o peso, as dificuldades e a dor desses encontros, carregados de culpa e de falta de coragem. Como acontece com muitos de nós, coragem de acompanharmos, na existência dos mais próximos, a decrepitude do corpo e a finitude do tempo.

Diferentemente de muitos filmes de família e muitos documentários explicitamente afetivos, derramados, celebrativos e “ao lado” de seus personagens, Oma é dotado de uma coragem: não evita o mal-estar, os desentendimentos e o encontro fracassado, ao mesmo tempo em que assume a incompreensão, a precariedade e a opacidade da linguagem como elementos constitutivos não apenas das relações familiares em jogo, mas, sobretudo, de sua matéria fílmica. Como já acontecia em Avós (2009), curta anterior de Michael Wahrmann, filme que simula ser um “filme de família”, em Super-8, que estaria sendo feito por Leo, um menino às vésperas de seu décimo aniversário, o peso da herança judaica pós-Holocausto se insinua nos momentos mais triviais: como quando as avós o entopem de comida ou lhe oferecem presentes inadequados. Mas são justamente esses momentos, aparentemente cômicos (ao menos assim foram recebidos por diversas platéias brasileiras), que trazem à tona algo de sinistro: um profundo mal-estar e uma ausência de conciliação possível, como na cena final em que Leo, em meio a um “Parabéns pra você” um tanto melancólico, recebe, com desconforto e desajeito, o recado de que aquela câmera que o filma é antiquada e não servirá para mais nada.

É nesse movimento de tomar para si, sem lamento, o irrecuperável do tempo que Oma não teme a ausência de transformação do próprio realizador nem sua impossibilidade de redenção, instalando-se cruamente e cruelmente num campo de problematização ética e estética, de problematização das práticas dos sujeitos na relação com o outro. Esse outro opaco, que não se deixa destituir, aprisionar, capturar; que resiste em sua fragilidade; que aceita e recusa; que ignora e é consciente; que, com tudo, por tudo, apesar de tudo, com toda a dor e mal-estar, com toda a precariedade da linguagem (seja a linguagem do filme, do vídeo caseiro, seja a precariedade do entendimento, da comunicação), ainda é capaz de negociar, de fazer-se sujeito. E tal negociação, no âmbito de um recorte operado pelo filme, revela por fim a dissolução da polaridade eu/outro, no momento em que o gesto do retratista (o realizador) – ao se implicar nessa construção sempre paradoxal – acaba por transformá-lo, à revelia e sem piedade, em retratado.

Um outro de Santiago

Filmado em 2005 em Montevidéu e montado em 2011 em São Paulo, como ficamos sabendo pelo crédito final, está claro que esses sete anos que separam a filmagem da montagem foram decisivos na construção de uma distância em relação ao material captado e à própria atitude em cena do neto-diretor-personagem. Essa distância no tempo, no espaço e, sobretudo, em relação a si mesmo e a uma atitude marcada pela prepotência no passado poderia aproximar Oma de Santiago (2006), de João Moreira Salles. Mas, ao contrário do “desleixo estruturado” de Oma – no qual as entradas, as saídas e os elevadores criam uma estrutura rígida e racionalizada –, Santiago é extremamente belo e bem composto. Mais importante, Santiago narra (por meio de uma voz off serena e sobriamente afetuosa) uma jornada de transformação pessoal do diretor-personagem, o próprio João Moreira Salles, jornada essa em direção a um esclarecimento (não desprovido de suspeitas), a uma autocrítica radical (não desprovida de certezas) e também a uma superação de si incontornável (não desprovida de expiação) rumo a uma transformação positiva e até mesmo redentora.

Já em Oma não há autocrítica explícita, superação de si nem redenção possível – impossibilidade formalizada pelas sucessivas vezes em que a porta pantográfica do elevador é dolorosamente fechada. Fica o mal-estar, o assombro, o conflito, a culpa e a precariedade da linguagem. Mas fica, sobretudo, o afeto calado, o não-dito, o represado, esse que levamos pela vida toda e que é irremediável. Talvez seja mesmo possível dizer: pela confissão de uma culpa, expiação de uma jornada e redenção final, no sentido da transformação de seu narrador, Santiago é um filme cristão, enquanto Oma é um filme terrivelmente judeu. Em Oma, tudo o que há é esse afeto desolador e sem consolo, dolorido e insistente, desprovido de transformação do diretor, perdão e redenção do encontro.

Em Oma, as vicárias alegrias são feitas das raras presenças do neto (afinal, é isso que importa) numa tarde de verão com café, biscoitos e uma televisão ligada. Mas talvez, reavaliando: sim, existe em Oma uma expiação, a expiação pública de uma culpa, como em Santiago - afinal o diretor Michael Wahrmann decidiu fazer desse encontro e dessas imagens um filme, decidiu montá-lo e mostrá-lo. A diferença é que, no caso de Oma, ele próprio não (se) julga em voz off, como poderia fazê-lo, cabendo a nós o julgamento, ou melhor, a avaliação. Somos nós, espectadores, quem devemos – no limite de todo incômodo, dor e incompreensão –, tomar uma posição. E, ao final, acompanhando a perenidade de um gesto de adeus, ficará para sempre ressoando a pergunta, em espanhol, do neto para a avó: “Que passa, Oma?”, ao que ela lhe responde: “Nada passa...”.

*

PS: Tive o prazer de dividir parte dessas inquietações e perplexidades com meus companheiros de júri da Mostra Competitiva Nacional do forumdoc.bh.2011, Daniel Ribeiro e Leonardo Vidigal, a quem agradeço pela qualidade das discussões. Amplio os agradecimentos a Carla Maia, cuja troca de correspondências me impeliu a escrever sobre Oma e a procurar palavras (ainda que sempre inadequadas) para tentar traduzir o assombro, não de todo compreendido, que este filme vem me provocando.

Maio de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


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