O Moinho e a Cruz (O mylos kal o stavros),
de Lech Majewski (Suécia/Polônia, 2011)

por Fabian Cantieri

RaniaQuadros em vida

Se um close pode parar o tempo no cinema, um quadro de Bruegel então seria a antítese dessa suspensão; seria a idéia primeira de movimento, de narrar. Pois como uma história depende antes de mais nada de dois fatos se sucedendo, a pintura aprendeu com os séculos a lidar com o instante e sua sugestão. Em O Moinho e a Cruz, Lech Majewski tenta encontrar esse brilho fulgurante do implícito, num suporte artístico com total capacidade de expressar o ato do começo ao fim. Longe de tentar trocar de suporte do cinema para a pintura (o que seria literal ou até mesmo metaforicamente impossível), seus tableaux vivants se estabelecem quase como ferramentas de estudo sobre a relação da arte pictórica com a ação.

RaniaO cenário é Flandres, invasão espanhola. O ano é de 1564. Mas isso pouco importa em um quadro e o filme não deixa de ser a tentativa de decupagem do próprio quadro de Bruegel - O caminho para o calvário (foto). É aí, nessa inflexão entre quadro e construção de planos sucessivos, que o tempo se esvai com sua importância cronológica. Existe o contexto da ocupação na Bélgica, mas ao mesmo tempo, o nascimento de Cristo. Anos distantes, mas lado a lado, quando postos dentro de uma lógica pictórica, e isso não vem a priori, mas sim como sintoma de um pensamento que enxerga a arte como ascese. O pintor-personagem Bruegel conversando com seu amigo burguês, colecionador de obras de arte, mostra como acredita que a pintura é uma possibilidade de suspensão do tempo para expressar momentos únicos da humanidade. Logo em seguida, a ascese é transposta literalmente em um movimento lento de subida da câmera até chegar ao deus do moinho - aquele que irrompe momentaneamente com o movimento da vida para transformá-lo em eternidade.

Mas se, séculos mais tarde, a fotografia chegaria como uma nova ressignificação mecânica desse instante, é no cinema e na sua escolha como plataforma narrativa que Majewski enxerga uma possibilidade de desvendar a criação artística. Ainda na conversa de Bruegel com seu amigo, o pintor flamenco assume a necessidade de desenhar um quadro grande, um quadro que abarque muitas vidas. Através da contemplação de uma teia de aranha, ele cria seu sistema onde, a partir de um centro motor, todas as outras ações acontecem ao seu redor. Partindo da crucificação de Jesus, veremos inúmeros cavaleiros da ocupação espanhola, um crânio, o deus do farol... veremos Maria chorando a morte de seu filho. Mas é lá no alto, à direita, com o corvo pairando sob a roda afixada num tronco, que temos a imagem mais forte de transliteração da pintura para o cinema. Ali, onde na visão de Bruegel só há um corvo, se estabelece a correlação de histórias. Ali na criação de Majewski, jaz um pai de família, torturado como Jesus, onde sua mulher, como Maria, assiste impotente a tortura.

RaniaE dessa transliteração onde surgem novos cruzamentos possíveis é que o criador daquela pintura viva consegue criar seus momentos únicos de beleza. Seus planos tableaux parecem indicar uma tentativa frustrada de se chegar perto de Bruegel, não funcionando nem mesmo como instrumento de apreensão forma,l enquanto os planos iniciais do cotidiano daquela família sem pai, são de uma graça atemporal. A confluência de cores, tons, texturas e contraste entre luz e sombra são tão óbvias quanto radicalmente diferentes entre uma arte e outra, mas enquanto na pintura temos o apontamento direto entre criador e objeto, o cinema, pro bem ou pro mal, sempre requer um intermediador. E é nessa relação, consciente ou não, que Lech Majewski, entre tropeços mundanos, nos mostra a vitalidade de enquadrar a vida.

Outubro de 2011

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