Na Estrada (On the Road),
de Walter Salles (França/Brasil, 2012)
por Filipe Furtado
Imagem-moldura
Os poucos momentos estimulantes de Na
Estrada envolvem trabalho: ocasionais respiros em que o protagonista
(Sam Riley) pára por algumas semanas num só lugar
e precisa de um emprego temporário. São cenas extremamente
simples, que não escapam de uma considerável mitificação
- mas há nelas um sentimento de direção,
como se o filme finalmente parasse por um instante para pensar
exatamente no como e porquê de estar ali com aquele personagem.
Por um momento, Na Estrada é um filme e não
uma operação. É também nestes momentos
que a fotografia de Eric Gaultier, um pouco como já acontecera
em Diários da Motocicleta, se beneficia do escopo
da narrativa para experimentar com a luz, como se buscasse um
catálogo da incidência dela sobre seu personagem
central nos mais diversos espaços. É uma ideia que
o filme ensaia algumas poucas vezes, e tão rapidamente
sabota. Na Estrada, afinal, não tem tempo para
experimentos, pois quer apenas adiantar um projeto.
O filme como um todo sugere uma briga constante nas suas imagens. Cada
momento que busque, por um instante que seja, insinuar uma autenticidade
um pouco maior no universo dos seus personagens imediatamente
é emoldurado pela câmera e transformado num “plano
de cinema”. Da mesma forma que Diários da Motocicleta
(e os dois filmes compartilham mais do que o mesmo cineasta, roteirista
e fotógrafo) transformava a viagem de Che Guevara pela
América do Sul numa excursão turística, os
EUA do pós-guerra de Na Estrada é reduzido
na sua essência a um passeio charmoso - muito menos torpe,
sem dúvidas, que o do filme anterior, mas igualmente nulo. Um
momento que ilustra precisamente este processo é a sequência
que conclui com o monólogo sobre o interesse do protagonista
somente nas pessoas que vivem loucamente. O que deveria ser um
momento de excitação e descoberta é reduzido
pelo desejo de Walter Salles de eternizar a sua beleza numa memória
sentimental. Neste pequeno instante, se expõe por completo
o choque entre o “eu” do protagonista e o “eles”
do cineasta, entre o momento constante da narrativa e a nostalgia
das imagens do filme que, como frequentemente acontece com imagens
nostálgicas, teimam em já nascer mortas.
Não
surpreende neste contexto a nulificação constante
do sexo pelas imagens. Os personagens de Na Estrada trepam
o tempo todo, mas sequência após sequência
o filme segue reduzindo-as a uma série de pequenas anedotas,
pequenos gracejos a oferecer ao espectador. As imagens emolduradas
de Na Estrada não têm espaço para
nada disso; sexo é algo um tanto grosseiro demais para
a ligeira visita guiada pelo cineasta. Filmar sexo como sexo estragaria
a série de anedotas familiares e, pelo bem do projeto,
é melhor colocar apenas alguns planos bonitos, acompanhados,
de preferência, por uma sacada esperta. O projeto de Na
Estrada como um todo prevê uma anulação
dos corpos que se reverte na forma como quase todo elenco é
conduzido rumo a se tornarem presenças recessivas, que
menos habitam seus lugares do que caminham dopados por eles. A
exceção fica por conta de algumas figuras à
margem (como Viggo Mortensen) que sugerem alguma autenticidade,
e da energia calculada de Garrett Hedlund, que é um tanto
elaborada demais para propriamente envolver como retrato, mas
funciona como um escape da monotonia do seu entorno. De fato,
para um filme de personagens, Na Estrada é curiosamente
desprovido deles. São todos coadjuvantes do passeio proposto
pelo cineasta, como se fossem uma espécie de fantasmas
de cartão postal.
De
certa forma, Na Estrada sugere, junto ao filme sobre
Guevara, o apogeu do plano de carreira de Walter Salles. Dois
filmes – que, não por acidente, pertencem a lugar
nenhum, a despeito de se moverem por muitos espaços –
que apontam para o cineasta como estrela; dois projetos perfeitos
no panorama do cinema de festivais contemporâneo. Desde
as derivações de Wenders no começa da sua
filmografia, Salles não esconde o quão pensada ela
é. É o projeto, muito mais do que momentos isolados,
que o interessa. Mesmo um filme superior, como Linha de Passe,
termina sempre dividido entre alguns momentos de observação
genuína (em particular nas sequências com o filho
evangélico) e a necessidade de realizar um portfólio
vampiresco de cinema contemporâneo. Tudo em Na Estrada
existe em serviço ao projeto cujo sucesso está simplesmente
em existir, em garantir que o cineasta filmou aquele material. Como
já acontecera em Diários da Motocicleta,
a relevância de Na Estrada existe toda no fora
da imagem. A elas, em si, cabe somente a insignificância.
Agosto de 2012
editoria@revistacinetica.com.br |