Ó Paí Ó, de Monique Gardenberg (Brasil, 2007)
por Cléber Eduardo

O axé-movie bizarro de Monique Gardenberg

Quando vemos a imagem de Lázaro Ramos, requebrando com languidez após uma grua ser usada para valorizar o rebolado de uma morena na rua, adentramos ao universo de axé-movie de Ó Paí Ó, adaptação da peça de Marcio Meirelles pela diretora Monique Gardenberg. Nas duas imagens iniciais, o corpo em movimento está no centro daquele mundo, que, portanto, será um mundo erótico-musical.

Sede de sexo e de dança. Essa é a imagem com a qual a diretora, baiana radicada no Rio desde muito, com passagens por espetáculos em palco (Os Sete Afluentes do Rio Ota, sua melhor mise en scéne), quer impregnar a identidade do Pelourinho. Consequentemente, de Salvador. Por extensão, dos baianos. Seus personagens estão sempre azarando alguém, esfregando-se em algum canto, cumprindo coreografias individuais ou em grupo, dominados pelas demandas de seus corpos. É tanto esforço físico e cênico para expressar a energia corporal que, com frequência, pode-se suspeitar da presença de pulgas nos figurinos para salientar os movimentos. 

Essa decisão de reduzir parte dos tipos a uma marca distintiva da baianidade de classe baixa urbana (sexo-música-dança), distinção complementada por evidências de uma suposta vocação cultural-social para a confusão e para a malandragem, impede cenas e diálogos de ocuparem alguma importância na narrativa além de serem reuniões de gírias, expressões regionais chamando atenção para si na divisão das orações, sussurros, cantos e berros empregados para se ganhar conflitos no gogó. Com incrível frequência, como se fosse uma prova do Big Brother, uma música invade o ambiente, interrompe tudo e todos começam a mexer o esqueleto. O claro objetivo de Monique Gardenberg, nessa radiografia celebratória e paródica do baiano-axé, é aderir a um hedonismo na pobreza (e um suposto hedonismo do pobre na Bahia) – mas procurando, a todo instante, o lado mais pitoresco do mundo sócio-cultural a nós apresentado.

Embora as situações integrem o cotidiano dos personagens, portanto regras e não exceções, a diretora parece salientar o exotismo de gestos e palavras, transformando atitudes em sintomas de um grupo e de um ambiente, assim como extraindo dos diálogos nada além de uma tipificação pela palavra/voz. Supõe-se que a caricatura, como premissa, seja assumida por Monique, tanto quanto por um Zorra Total ou Sob Nova Direção ou ainda A Diarista. A disposição é transformar tudo em material cômico para rirmos do “gozado”  jeito baiano de ser (exposto à gozação). Paródia – ou, anos atrás, e em linguagem corriqueira, diria-se: tiração de sarro. Parece até coisa de olhar do Sudeste e do Sul com esforço para sacanear com os baianos. 

Não se reivindica do cinema nas linhas acima, por princípio crítico e estético, a tarefa de documento ou de re-(a)presentação. Também não se cobra da imagem uma fidelidade em relação aos comportamentos humanos, um compromisso com o rigor antropológico no retrato/painel de um espaço/comunidade ou um entendimento desse espaço dentro de um contexto materialista, que não o encare apenas como conjunto de efeitos e de estereótipos sem conexões com a sociedade e seu tempo histórico. O cinema não tem a obrigação, por princípio, de ler e decodificar o mundo. Não precisa encontrar no indivíduo um reflexo de uma estrutura que o produz ou pelo menos o induz a certas ações e emoções. Pode escancarar, como faz Ó Pai Ó, a própria encenação. E estabelecer uma distância, crítica ou cômica, da realidade que o inspira. Ou melhor: da imagem da realidade a qual se vincula. Em outras palavras: não esperemos um A Grande Feira, de Roberto Pires, ou um Cidade Baixa, de Sergio Machado, se o parentesco é com Orfeu, de Marcel Camus, e com Cinderela Baiana, produção de Antonio Galante. Estamos no campo dos adereços, da farra do exotismo, no festival do insólito, sempre assim tratados pela direção.

O parágrafo acima não seria necessário se não estivéssemos em alguma medida, na recepção aos filmes brasileiros, formatados por expectativas pautadas pelo realismo e pelo naturalismo. Essa é uma tendência, tradicional, dos críticos no Brasil: esperam de um filme brasileiro a autenticidade das experiências, das palavras e dos espaços, tendo como norte de avaliação e de exigência a verossimilhança e o caráter de documento. Tende-se a valorizar esteticamente o grau de possibilidade de uma história ficcional acontecer fora da ficção e de expressar circunstâncias identificáveis na realidade do Brasil. Essa proximidade entre o cinema e o país tem determinado o grau de adesão dos filmes a uma idéia de cinema nacional, aliada a uma linguagem empenhada no efeito de real “sem perda do espetáculo” – porque hoje reality sem show é colocado na periferia da visibilidade.

Nesse contexto de realização e de recepção crítica, Monique Gardenberg, diretora distante das noções de realismo e militante da exposição de seus artifícios (preocupada com o show e não com reality), trabalha no risco de ser mal compreendida ou condenada. Não se está levando em conta aqui o êxito ou não de suas estratégias de linguagem, mas a necessidade de se compreendê-la a partir de suas aparentes ambições. Monique não quer o Pelourinho em imagens, mas uma imagem do Pelourinho. Em vez de partir diretamente dele para sua representação, parte de imagens mentais sobre o espaço em questão, celebrando suas tensões folclóricas e a entrega à urgência da carne e do coração. São imagens nas quais não vemos os seres e as experiências. Apenas seus códigos, que, embora aparentam estar despidos de julgamentos morais, carregam na caricatura, até serem reduzidos a tipologia de esquetes cômicos de televisão, tendo um muquifo como núcleo de condensação do painel.

Mas por que essas imagens? Com quais intenções? Nos momentos finais, uma aberração: surge um deslocado e oportunista letreiro de contextualização social daquele espaço após uma situação de criminalidade. Somos informados de dados de morte de negros e de ações não-governamentais pensadas como anticorpos. Depois de festejar a maior parte do tempo seu universo ficcional, mostrando a força dos pobres para resistir às suas adversidades com axé no corpo, malandragem no espírito e hormônios na cabeça, a diretora lembra-se de seu compromisso com o nacional-social. Precisa denunciar com um letreiro o que não foi uma questão o resto do tempo. Nenhuma vergonha de buscar a legitimação onde ela não está e nunca nem pensou em estar.

Após a situação criminal, porém, a festa não cessa. Não a festa de Salvador no Carnaval, mas o clima festivo do filme. Nenhum luto. Nenhum respeito. Nenhuma mudança de registro. O hedonismo do filme, nesse momento, é maior que o do espaço. E dos personagens. Natural. Afinal, o luto, a rigor, está sobrando (para Monique). Portanto, está fora de questão. Importa a festa. Nessa operação de resistência ao sofrimento por meio do prazer, operacionalizada de forma que banaliza ambos, perda e prazer, Monique Gardenberg comporta-se como quem nos empurra uma felicidade cínica olhos adentro, sem nos permitir ver a vida daquelas pessoas ficcionais para além de seus showzinhos bizarros, apresentados para uma câmera conduzida por um olhar grosseiro.

Se antes havia procurado o caminho do thriller político transnacional (Jenipapo), para demonstrar capacidade de evitar brasileirismos, e depois procurou o thriller mental de estrutura com aparência chique-rocambolesca, talvez para mostrar fachada de pensamento rebuscado (Benjamim), a diretora agora busca o universo popular com uma codificação próxima da aberração. Não são os personagens que são bizarros de fato. É o filme.

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta