O Palhaço,de Selton Mello (Brasil, 2011)
por Andrea Ormond
Fora
da ordem
Em Feliz Natal (2008), Selton Mello escolheu uma família
de classe média e um pária que, coitado, retornava
ao lar a tempo de ver Noel. A ceia natalina e a fábula
da infelicidade não chegaram a inspirar e, deixando de
lado os parentes mesquinhos do primeiro filme, O Palhaço
optou por utilizar uma metáfora: o circo.
Já sabemos, portanto, que estaremos diante da questão
da liberdade. A liberdade de criaturas cósmicas, andarilhos,
que não têm horários, não batem cartão
e se recusam a comer outra coisa que não a poeira varrida
pelos sapatos. Gargalhada Final (1978), de Xavier de
Oliveira, permanece no cinema brasileiro como a ode maior a esse
tipo de experiência. Sobretudo ao amor entre os palhaços,
pai e filho, tão cristalino que se ouve no mais úmido
silêncio. Interessante que Trombada e Marreco fogem do universo
para eles comum (o circo), em caminho inverso ao nosso. Nós,
que idealizamos o bosque dos artistas. Eles, que caem na estrada
e se aproximam do nosso cotidiano. Além
desta bela sacada inicial, Xavier foi extremamente hábil
ao torcer o rabo da porca uma vez mais: preferiu narrar um conflito
de gerações em que o pai não é “maduro”
e o garoto não é “rebelde”. Na verdade,
ambos o são, ao mesmo tempo. Ambos têm uma curiosidade
qualquer pela vida, que nos induz ao mistério de observá-los.
A narrativa de Xavier é acachapante, intensa. Quando Trombada
fala da morte da esposa, os dedos do velho evoluem como se caíssem
do trapézio, a voz emocionada faiscando no ar. Fregolente,
ator rombudo e rodrigueano, nesta hora se transforma
em menino. Ele se aconchega em alguma saudade que o personagem
guarda dentro de si, congelada como se fosse eternidade. Depois
a explode em alegria, em moda de viola, em chupar gomos de laranja,
em recordar a infância do filho. Que o ama, que o copia,
que o desafia. Se existirá final feliz ou não, isto
não vem ao caso. O necessário é a união
dos dois homens, a implicância mútua, representada
nas menores coisas, nas maiores singelezas.
Assim
como O Palhaço, Gargalhada Final pode
vir a sofrer de uma comparação com Fellini e adjacências
– caso se torne conhecido na proporção em
que merece. No entanto, estamos diante de uma mesma origem circense,
que é anterior aos filmes e que informa o italiano e os
brasileiros, mostrada de maneira cruel e sórdida em Gargalhada
Final; tateada, com carinho, em O Palhaço.
O filme de Selton Mello não se amedronta ao flertar com
as tradições do cinema popular do Brasil. Pelo contrário,
deixa clara a obsessão pelo passado: mostra notas de dinheiro
antigo e confunde-as com o presente e com personagens oníricos.
A própria estética do filme parece atentar para
esse “salão dos passos perdidos”, quando coloca
os personagens em molduras. Há longas sequências
em que o espectador pode olhar para a trupe de Benjamim como se
estivessem posando para quadros.
A
intimidade com a vida do circo confirma a tese da nostalgia: todos
sabemos que tal fixação pelos picadeiros já
saiu do noticiário há anos. Não é
de hoje que a televisão – e a Internet – substituíram
a pantomima que fascinava as crianças antigas, sedentas
pelas lonas e pelos espetáculos ao vivo. Nelson Ned na
trilha sonora, a ranzinzice de Jorge Loredo e o monólogo
de Moacyr Franco aprofundam essas memórias. Como se sabe,
eles são representantes de um circuito off, alheio
ao que vingou na intelligentsia, e que cada vez mais
exala um charme todo seu. O dó de peito de Ned e o discurso
interiorano de Moacyr estão próximos do trágico,
do fanfarrão, do vulgar. Neste sentido, o diretor parece
ter colocado, de propósito, Benjamim no pocket show
de Jorge Loredo. O rapaz sorri como se dissesse amém à
liturgia do mestre, o galante Zé Bonitinho, que Rogério
Sganzerla aproveitou em Sem Essa, Aranha (1970).
Apesar de a estrutura de O Palhaço não ser tão intrincada quanto a de Gargalhada Final pode-se perceber a tensão, a crise do filho. Benjamim quer abandonar o pai (Valdemar), quer sair do casulo, quer namorar a moça bonita. O pai gosta de exercer a autoridade, ser o dono do pedaço, mesmo que na faceta de gente boa. Existe no filme a premissa de que algo – de novo, a arte/a liberdade – é tão superior à rotina, que a equipe do circo acaba se fechando em si mesma. Esse determinismo enfeitiça uma criança de 10 anos. Ela estréia, sofre o “batismo de fogo” e passa a fazer parte da tribo. Como os Nhambiquaras, visitados por Lévi-Strauss, ao celebrarem a puberdade.
As viagens pelo interior do país lembram o road movie de Na Estrada da Vida (1980). Os rincões esquecidos, o chão de terra batida. Mas, sem os cordões de ouro, a barba por fazer e as calças ultra-apertadas, O Palhaço edulcora a pílula. Não dá o mesmo tanto de realidade. Nos momentos em que aparece uma crônica de costumes – os noivos da loja de auto-peças ou os bóia-frias – imediatamente mistura-se algo inusitado. Um tom acima, como a introspecção de Benjamim. Não à toa, o despojamento dos palhaços às vezes se traveste de quase luxo nos figurinos. Justo eles, que mal têm como fechar as contas no fim do mês e usariam uns farrapos para esconderem as partes. Mas esse alheamento do real não impede momentos de cinismo. Há quase sempre um tolo enganando e um sorrateiro sendo enganado. Felizmente, O Palhaço entendeu que nem todos são anjos e nem mesmo precisam sê-los.
Novembro de 2011
editoria@revistacinetica.com.br |