Os 3,de Nando Olival (Brasil, 2011)
por Andrea Ormond

De todos os mundos, o mundo

Não tenho qualquer pretensão de ser um Antônio Conselheiro de saias, mas é certo e insolúvel que o fim do mundo está próximo. E começou a acabar faz tempo, talvez em maio de 1968, quando uns jovens loucos franceses saíram às ruas de Paris gritando que era “proibido proibir”. Ora, nada mais totalitário, nada mais desencorajador, do que a utopia de liberdade absoluta (notem: o absoluto, esta pantera, não existe) transformada em frase fundamentalista. Desde aquele momento, a humanidade se condenou. Aceitamos qualquer imposição (Não fume! Não beba! Não trepe!) como “novas propostas” para um sonho desfeito, como um substitutivo da contracultura que não vingou.

Explico: aquele discurso juvenil foi logo cooptado pelos agentes mais reacionários possíveis, que o utilizam, hoje, para a imposição de um “mundo melhor”. Supostamente melhor, pois regido pela “consciência social”, pela “geração saúde” e todos os chavões que apregoam o microgerenciamento na vida dos indivíduos, o moralismo mais mequetrefe, sob o signo de uma constante caminhada rumo ao beatismo pseudo libertário. Celebra-se o ex-guerrilheiro no poder, o ex-hippie a soldo das corporações globalistas. O capitalismo é tão perverso que perverteu até mesmo seu combate. Lúcio Cardoso é quem tinha razão, ao dizer preferir um mundo onde os homens fossem “livres e desorganizados”. Isso porque ao tentarmos conduzir a busca da liberdade individual, ao reduzi-la a um slogan, a uma “ideia”, ela deixa de ser aspiração singular, desejo, e passa a imperativo espúrio e coletivista. Daniel Cohn-Bendit e os filhos de Woodstock não perceberam que abriam as portas para que seus pais de carne e osso fossem substituídos pelo pai burocrático, tecnocrata, pela autoridade sem rosto nem alma, que triunfa no éter e é regida desde o inferno das “boas intenções” institucionalizadas. O monopolista Steve Jobs erguido à categoria de um John Lennon vendedor de iPods, de um Gandhi associado à Foxconn, é o exemplo ridículo que não me deixa mentir. Se antes o velho mundo estava atrás de nós, hoje fica óbvio que corremos em volta de nosso próprio rabo, percebendo-o cada vez maior, mais voraz e mais feio.

Os 3, dirigido por Nando Olival, pretende – ainda que ingenuamente – tocar nessa questão da vontade individual diante da interdição corporativa e tirânica, personificada em uma agência de publicidade que monitora o amor de três jovens para vender seus badulaques. Camila, Cazé e Rafael são apaixonados uns pelos outros. Conhecem-se antes de entrar para a faculdade e vão morar juntos em um apartamento decrépito, nas franjas decadentes de São Paulo. Proprietários de uma dinâmica única, terminam cooptados por um publicitário coxinha para montarem um reality show de seu cotidiano. A ironia é que a ideia parte deles mesmos, que apresentavam um trabalho sobre o assunto. “Façam o que quiserem”, diz o publicitário. Como a graça dos reality shows está nos conflitos, os três criam um psicodrama digno de entusiasmar o psicanalista Roberto Freire. O que não sabem é que, para a fome consumista dos espectadores, não basta a aventura individual pura e simples. Assim, logo começam as interdições: novos “personagens” são acrescentados na casa. Conflitos verdadeiros emergem no teatro e Rafael termina substituído por um cover de si mesmo. É o controle da experiência humana levado às últimas consequências.

E em troca de quê vendem sua liberdade e suas consciências? Dinheiro, claro. O filme é hábil em mostrar o quanto se gostam, o quanto aquele trisal diferente funcionava e talvez se desfizesse por suas próprias contradições. Mas Rafael e Camila têm aspirações artísticas, que julgam poder suprir com o olhar (e a grana) de terceiros, enquanto Cazé é um bufão, narcisista nato. Se o inferno são os outros, a expurgação de nossos mais íntimos pecados pode estar no voyeurismo. A agência é comandada por dois dinossauros, um deles avô do coxinha. Ambos se entusiasmam com o projeto, acompanham a rotina da casa pela Internet. Comemoram o sucesso de vendas dos produtos que os três utilizam compulsoriamente. É uma divertida metáfora da sociedade de espetáculo, do Estado-Babá, que pretendem nos guiar até “a felicidade”. Felicidade para quem, cara pálida? O desespero autorreferencial em que a casa mergulha poderia ser diminuído com doses maciças de fluoxetina. Mas Camila, Cazé e Rafael são osso duro de roer, e utilizam quilômetros de baseados para reconstruírem seus referenciais de eu.

Clichês emergem, um ou outro rasgo de melodrama poderia ser evitado, mas o filme insere-se em uma linhagem curiosa do cinema brasileiro, que passa por Um Homem Sem Importância e O Vampiro de Copacabana: a descoberta da alteridade na opressão do meio. Fato é que Os 3 remete a uma rebeldia espectral, a uma retomada de discursos esquecidos. Nada mais démodé que dizer “não” e resgatar, de todos os mundos, o mundo. Nosso, único, indizível, misterioso. A verdadeira revolução é a do ser. O resto, palavras de ordem para jogar crianças no abismo.

Novembro de 2011

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