ensaios
Futuro em luto
O rito parricida em O Sangue
por
Luiz Soares Júnior
"(...) Eu compreendo isto assim como leio em Edgar Alan Poe que a gênese ilimitada do universo em seus detalhes descobre o que no gênero fantástico não constitui uma narrativa, não assinala mais uma figuração; ou seja, o que agora é uma alusão à alteridade constante deste mundo que nasce".
Jean Louis Schefer, L'homme ordinaire au cinéma.
"Eu busco este ponto do espírito onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessam de ser percebidos contraditoriamente".
André Breton, Segundo manifesto surrealista.
Em
O Sangue, os labirintos da filiação se
entrecruzam na noite transfigurada de um conto iniciático:
um pai deve morrer para que um filho encontre um lugar e um papel
no mundo, e uma nova família surgir, a contrapeso e contragosto
da família de sangue e seus avatares. Ressentimento, dívidas,
deveres; um passado demasiado antigo e opaco deve ceder espaço
a um presente saturado de aparições; uma criança
deve reemergir desta aventura como um adulto casmurro e estóico,
liberto do passado e frontalmente encarando o próprio futuro
(o plano final). O seu olhar - como o de Plato em Juventude
Transviada, como o de Bowie em They Live by Night -
sabe o preço que se paga para crescer, este opróbrio:
experiências primordiais abrigadas sob o invólucro
da noite - parricídio, talvez incesto; o aguilhão
do desejo no triângulo calcado (Nino, Clara e Vicente) sobre
o sacrifício da família original; e finalmente a
exclusão do universo familiar - de qualquer universo grupal,
hereditário ou afetivo -, a travessia sem volta em direção
ao mundo, a desterritorialização.
Porém, ao contrário dos bildungsroman clássicos,
não temos ao final do percurso a reconciliação,
o reencontro com as origens. Nino vai embora, e com sua partida
o filme, este inventário de travessias - do pai ao filho,
do triângulo ao casal, do campo para a cidade - chega ao
fim. Soturnas travessias, presentes também nesta distância
entre o campo e o contracampo, como se os personagens habitassem
dimensões diferentes, como se fosse impossível ocuparem
um mesmo espaço e um mesmo tempo, constituírem uma
verdadeira família. Do plano de detalhe de uma mão
na fechadura à fantasmagórica profundidade de campo
de um horizonte em água-forte; de um filho e um pai que
se perdem na noite para crianças que sonham, agitadas por
pressentimentos dos quais jamais saberemos a causa nem os fins;
do resgate de um corpo no pântano - traço
do fantasma de Janet Gaynor flutuando no rio em Aurora,
mas também de Edith Scob, nesta paráfrase lírica,
diurna do Angst expressionista que é a cena de
Murnau revista em Judex, de Franju -, corte para Vicente
e Clara, que se caçam e se estreitam numa cumplicidade
vampiresca à beira do rio: excluídos o pai e a criança,
o passado e o futuro, o casal pode enfim integrar o microcosmo
de sua vida subterrânea, adolescente ao mundo adulto - como
aliás também em Juventude Transviada.
Mas,
ao contrário do filme de Ray, O Sangue não
nos situa em nenhum repère sociológico
ou continuidade narrativa (interdição do fondu
clássico, da contigüidade, com notável
exceção do close nas mãos de Vicente e Clara,
que demarca um ritual de passagem que vai estruturar todo o filme);
a elipse é o seu domínio, a fulguração
o seu princípio. A elipse é tanto a chave oracular
que permite ao filme esposar uma causalidade noturna e misteriosa,
feita de analogias e intuições mediúnicas,
não muito distante do conceito (experiência?) surrealista
de vasos comunicantes; quanto estigma dos estados alterados ou
intensivos de consciência - pesadelos, alucinações
visuais ou auditivas - através dos quais o filme se converte
num mosaico cocteaunesco de duplos e espelho (Cocteau,
o mago secreto, inspirador de toda uma modernidade cinematográfica,
Vecchiali, Arrieta, Argento, Carax, Rivette, Marie-Claude Treilhou,
Ruiz, Portabella, Bene, Schroeter)..
Os pesadelos que agitam as crianças no início do
filme antecipam uma experiência primordial e mortífera
(o parricídio) como o núcleo da relação
fraterna que o filme vai desenvolver: dívida de sangue
que vai impossibilitar a reconstituição de qualquer
unidade familiar, de sangue ou de afinidade. Nino ouve a voz de
uma distante e fantasmagórica Clara - fora raptado pelo
tio, que o levara para sua casa - na loja onde o tio o levara
para comprar roupas. A gemelidade entre os irmãos (vestem-se
da mesma forma, para induzir os outros a vê-los como uma
única imagem refratada, lúdica tentativa de resgate
da desagregação familiar numa reflexão incestuosa,
como sugerido na cena anterior); ou entre Clara e Vicente, ao
sagrarem uma aliança incomensurável, introduzida
pelo onívoro close nas mãos do casal, quando o tempo
parece se cristalizar numa efígie que congrega Eros e Thanatos,
a Redenção - implorada por Vicente a Clara: "Salva-me;
só confio em ti" - e a Danação, na cumplicidade
que os une, ao enterrar o corpo do pai: um pacto de silêncio
fraterno e erótico que sela o interdito, e já anuncia
a futura exclusão de Nino do circuito do luto e do amour
fou, na Noite sacrílega onde nasce o casal.
O
filme nos defronta com um mundo de pais e de filhos, de culpas
e resgates (João Bénard da Costa: "Não
há mundos sem dívidas, como não há
mundos sem culpas"), de simbioses entre espíritos
consangüíneos mas também de estados de alma
imberbes com paisagens envenenadas, insalubres (o pântano,
o nevoeiro): um conto de fadas marcado pelo Fatum. O
menino é pai do homem, dizia Wordsworth; mas a infância
- a Origem - descrita por Costa é, assim como no filme
de Laughton (Night of the Hunter), um Paraíso
amaldiçoado, destinado à Queda. O mundo da criança
é um mundo de imagens flutuantes, desvinculadas de elos
causais, de situação; é o mundo
do instante fascinatório e do vaticínio onírico:
O "Era uma vez" e o "Abracadabra" remetem
a um uso mimético da linguagem, um universo onde a palavra
não se diferencia da coisa, a significação
da presença.
Ao encantar o mundo com estas fórmulas, a criança
apropria-se dele. Mas o mundo de Night of the Hunter,
assim como o de O Sangue, é um mundo muito antigo,
lacerado pela culpa e pelo Destino; um mundo mítico, onde
a féerie do olhar infantil não encontra
um lugar para transfigurar. Embora as figuras paternas sofram
uma inelutável ronda de substituição e rarefação
ao longo do filme, elas permanecem como o grande e sombrio pano
de fundo que governa a vida dos adolescentes: um maciço
horizonte de refoulée no qual se inscrevem os
graffiti dos bruxuleantes trajetos dos personagens (e,
segundo o esquema freudiano do Verdrängung, sabemos
que quanto mais ausente o passado, mais presente
e daninho este se torna); sabemos que a batalha está
perdida de antemão, sabemos que os personagens serão
tragados pela solidão e pelo isolamento, sabemos que não
há salvação para eles; embora seja um filme
acalentado pela exuberância imagética da infância
(inclusive de uma certa infância do cinema, arte de prestidigitações
de feira e de numinoso, de luzes e de sombras, aparições
e desaparições: Griffith, Murnau, Tourneur), é
uma infância desde sempre marcada (e voltada) ao passado,
ao pretérito perfeito de um destino inelutável,
um fora de campo trágico que embalsama a féerie.
Este romance das origens, na expressão
de Marthe Robert, também informa a démarche maneirista
do próprio filme, talvez o único deste gênero
a se esperar de Pedro Costa. Jean Baptiste Thoret escreve: "O
conceito do barroco sofreu um destino irregular (superexploração
maciça ou ausência total), antes de ter sido suplantado
em meados dos anos 80 por um outro conceito, o maneirismo, também
derivado do campo pictórico, e designando uma espécie
de barroco tardio, minado pela excessiva auto-consciência.
Uma arte em seus estertores, que tinha apenas como futuro a retomada,
a citação ou a distorção de obras preexistentes
ou, para retomar a bela expressão de Claude-Gilbert Dubois,
de "modelos parentais"."
A
grande questão maneirista - como, aliás, o impulso
essencial na obra de Godard - é colocar que não há
projeto modernista, projeto voltado para o futuro, se não
passar por uma retomada dialógica com o passado, com os clássicos.
É velha questão da Modernidade européia, que
teve origem na Imitação dos antigos, durante a Renascença,
prolongou-se no maneirismo pictórico para ressurgir mais
adiante, no século 17, com as Disputas entre Antigos e Modernos,
opondo Boileau a Charles Perrault. Costa - como Carax, à
mesma época, e como todo grande formalista - retoma,
por sua vez, a necessidade deste embate com as origens do cinema,
com o que nos precede e (possivelmente) sobreviverá. O
Sangue é um filme que "cumpre luto" em duas
frentes, diegética e formalmente: neste voltar-se para (contra)
os pais - em nome de um tempo intempestivo, por uma História
do cinema por-vir -, a chance de um exorcismo e um desvelamento
das possibilidades libertadoras de um novo cinema. E uma nova vida.
Dezembro
de 2010
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