Os Descendentes (The Descendants),
de Alexander Payne (EUA, 2011)

por Raul Arthuso

Por um mundo melhor

Parece que uma assimilação corrente de Os Descendentes diz respeito à sua capacidade de misturar as doses de humor e de drama, algo que, num pensamento cinematográfico regido pela conquista do mercado (como o Brasil), é tomado como exemplo de bom roteiro, boa direção, boas atuações - enfim, selo de qualidade para um diálogo franco com o público. É claro que isso deixa de lado o que é mais marcante na mise-en-scène do filme: sua relativização extrema do ponto de vista. Pois, Os Descendentes traz, não apenas em sua encenação, mas no centro de sua história também, a revisão das opiniões, das ações, do passado, do futuro. O filtro dessa revisão é o protagonista Matt King (George Clooney) que, ao descobrir que sua esposa moribunda tinha um caso extraconjugal, sai à procura desse amante não como uma procura pessoal, uma forma de entendimento, mas sim um respeito por sua esposa que terá a chance de se despedir do último homem que amou.

O mundo de Matt é, nesse sentido, feito de uma necessidade revisionista, a custo da neutralização das vontades, das paixões, das pulsões, dos instintos primeiros. Logo após ter a confirmação do caso da esposa, ele vai até seu quarto de hospital, onde ela vegeta em coma, e discute com ela, em um rápido momento de raiva, para logo em seguida se recompor e entrar em sua “busca pelo respeito da memória da mulher”. A cena-chave do filme é o encontro de Matt com o tal amante: fingindo tratar-se de um papo amigável, Matt fica numa ponta do quadro, o amante em outra. Eles nunca se aproximam, não travam verdadeiro contato, não contaminam a cena da raiva contida de Matt nem da tensão do amante, que vê a possibilidade de sua família ruir. Há apenas um espaço, reforçado pela articulação da montagem, de sobriedade no que deveria ser confronto. Isso porque não interessam seus problemas, mas sim entender a esposa moribunda de Matt: ela amava seu amante? Ele, por outro lado, a amava também ou era só uma aventura?

Este encontro frígido gira disfarçadamente em torno do tema central da potência masculina, ou melhor, machista (Ser corno ou não ser, eis a questão), quando quer parecer uma profunda dramaturgia existencial (Ela me amava ou te amava? Não importa, eu a amo e você não!). O cinema resume-se ao básico plano geral, plano próximo, plano/contraplano quando o importante é que os dois personagens saiam de cena sem o confronto, livres de crises, sabedores de uma verdade límpida comum. Não há dúvidas que esse não é o terreno dos instintos, mas de um desejo de civilidade de onde emanaria, então, um “mundo melhor”, onde as pessoas se respeitam, se entendem, enfim relativizam o outro. Isso está disseminado na forma do filme, perceptível na raridade dos encontros em cena, do toque, do contato, num filme onde se podem contar nos dedos gestos marcantes dos atores. Toda a construção formal se sustenta/resolve no ator que para na marca certa, dá seu bem escrito texto, réplica, tréplica, tudo bem, obrigado, vamos para a próxima.

No momento mais gritante desse relativismo, já na parte final, os sogros de Matt vão visitar a filha prestes a morrer no hospital. Matt resolve, então, tirar as filhas e um garoto, amigo de uma delas, para que os sogros tenham privacidade. Já do lado de fora, esse garoto pergunta para Matt sobre o sogro “ele é sempre assim um babaca?”, ao que Matt responde olhando para dentro “Sim, é”, para então o contraplano mostrar pela fresta da porta o tal sogro beijando carinhosamente a testa da filha, naquele que é talvez o mais belo gesto de um personagem no filme. Trata-se de um jogo onde a etimologia plano-contraplano é levada ao pé da letra como forma de apaziguar não apenas as opiniões mais radicais das personagens, como também limpar qualquer tipo de aresta que possa resultar em contradições, delírios, pontas soltas, sombras em meio ao ensolarado Havaí, cenário do filme. Os Descendentes, no fundo, realiza o sonho de um mundo onde a dimensão do conflito é reduzida a uma questão de dar a outra face. E o filme transpira esse mundo regado a álcool-gel, onde tudo termina bem, com a família junta assistindo a TV no domingo em um paraíso tropical.

Março de 2012

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