Os
Inquilinos, de Sergio Bianchi (Brasil, 2009) por
Eduardo Valente De
volta
A cada longa que realizou, mas mais decisivamente
a partir de Cronicamente Inviável, Sergio Bianchi criou para si (e deixou,
com algum conforto, que criassem ainda mais) a imagem do “grande provocador”,
aquele que “bota o dedo na ferida do Brasil”. Só que se estes dedos na ferida,
para quem acompanhou a sua carreira desde os primeiros curtas e longas, foram
se tornando tão menos realmente provocadores quanto mais se pretendiam assim.
Porque de fato é difícil perceber, afinal, num país com a capacidade da auto-ironia
e da constatação vazia dos seus defeitos, onde o Casseta e Planeta ou o CQC fazem
piada em horário quase nobre da TV aberta com uma série das principais instituições,
qual seria a força real por trás destes filmes, para além de uma mesma catarse
apolítica, que atingia seu ápice de afasia em Quanto Vale ou é Por Quilo? Assim,
um cineasta que realmente começou causando incômodo com os hoje pouco lembrados
Romance ou A Causa Secreta (para ficarmos nos longas) foi se domesticando
cada vez mais, quanto mais era saudado pelos fãs de suas “provocações”. A
partir deste panorama, é preciso admitir que fomos a Os Inquilinos com
pouquíssimas expectativas de viradas de curso realmente potentes, e embora esta
predisposição certamente possa ter ajudado na impressão, a verdade é que o filme
se impõe como um autêntico reposicionamento de curso e interesses do diretor na
cena brasileira atual. O próprio Bianchi tem dito que o filme é uma volta a um
tempo anterior na sua carreira, mas importa menos o discurso externo e mais a
maneira realmente firme como isso se dá na tela. Tudo começa pelo interesse real
pela construção de um personagem de ficção, e sua encarnação na tela no corpo
e rosto do ator Marat Descartes. Pode-se dizer sem medo que o Valter interpretado
por Descartes é o corpo e alma de Os Inquilinos, e a maneira como isso
se dá é pela aposta de Bianchi em se dedicar com riqueza de detalhes ao seu entorno
e presença física, mas também, e principalmente, por fazer do filme um espaço
aberto para o imaginário do personagem. Assim, a sensação iminente de tragédia
violenta não se impõe nunca como um dado exterior e típico, mas sim como uma construção
do personagem, baseado tanto em elementos externos como principalmente pela sua
maneira particular de filtrá-los. Chama
a atenção a maneira atenta e tranqüila como Bianchi usa de elementos eminentemente
cinematográficos para construir esta sensação. Pensamos por exemplo no uso que
ele faz da fusão de imagens em determinado momento (com as cenas do cachorro pulando
o muro), ou da construção narrativa solucionada num reposicionamento de câmera
quando Valter vai ao outro lado do muro e vê sua mulher pela janela. Momentos
como estes estavam bastante ausentes do seu cinema mais recente, pelo menos em
termos de sutileza de artesanato. Ao longo de Os Inquilinos, estes são
bem mais do que apenas momentos de exceção: dentro da casa do protagonista Bianchi
esquadrinha os espaços com grande cuidado (não só posicionando a câmera, mas movimentando-a
com habilidade), enquanto do lado de fora a onipresença da paisagem da periferia
nunca se torna hiper-simbólica, servindo muito mais como um pano de fundo de extrema
materialidade. Há pequenos momentos de mão pesada ainda aqui e ali (principalmente
uma alusão a pedofilia bastante mal filmada), mas estes sim são a minoria. Em
mais de um sentido, Os Inquilinos dialoga diretamente com o Gran Torino
de Eastwood – e realmente não nos era antevisto o momento em que estes dois cineastas
seriam citados numa mesma frase. A conclusão bastante distinta das trajetórias
do Kowalski de Eastwood e do Vagner de Bianchi, ambos cercados por uma situação
opressiva no micro e no macro de seus universos, nos relembram das visões de mundo
eminentemente opostas dos dois diretores: enquanto o primeiro está pronto à ação
e ao sacrifício por seus valores, o segundo nunca conseguirá escapar da paralisia
que o define. Independente do espectro ideológico desta escolha, o que Os Inquilinos
faz é recolocar o nome de Bianchi numa posição de relevo entre os bons cineastas
moralistas, lembrando que o que havia retirado ele de lá nunca foi o moralismo
por si, mas a maneira anêmica como este (não) vinha se transformando em cinema.
Tomara que esta seja mesmo uma volta e não apenas um soluço pontual. Outubro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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