Os Monstros, de Luiz
Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Guto Parente (Brasil,
2011)
por Fábio Andrade
A
volta dos que não foram
Há traços em comum suficientes entre Os Monstros
e Estrada para Ythaca para transformar a idéia
de autoria compartilhada do grupo de diretores em uma autoria
conjunta. Em ambos os filmes, existem prerrogativas parecidas,
tanto estética - o esvaziamento das atuações;
a predominância dos planos gerais; a elasticidade da duração;
o rigor na anulação de uma beleza plástica
clássica nos quadros - quanto narrativamente. São
dois filmes que partem de um luto e que narram o seu trajeto de
superação, a ser purgado ao longo da projeção;
em ambos, o que parece predominar é o discurso da amizade
- em Os Monstros, chegando inclusive próximo de
uma idéia de gueto - e isso, somado à nada convencional
estrutura de set de Ricardo e Luiz Pretti, Guto Parente e Pedro
Diógenes, tem sido suficiente para criar uma relação
crítica francamente monótona com as obras. Por sorte,
tanto Os Monstros quanto Estrada para Ythaca
oferecem muito mais a se explorar do que permite o mínimo
esforço para se cavar lides em cadernos culturais, ou o
desespero que se dedica tão obstinadamente a procurar a
próxima saída para o cinema brasileiro, sem sequer
se dar conta do lugar onde se está.
Para começar a desconstruir minimamente o discurso quase
uníssono em torno do trabalho do grupo, talvez seja necessário
voltar ao luto de Estrada para Ythaca, sobre o qual todo
o longa será assentado. Pois, embora o luto seja motivado
pela morte de um amigo, no filme não é exatamente
o amigo morto que é tomado como mola propulsora, mas sim
uma fotografia, uma imagem estática que o mostra ainda
vivo e em momento de mal fotografada e espontânea felicidade.
Não à toa, quando o personagem finalmente aparece
- na tão comentada citação à obra
de Godard e à imagem de Glauber Rocha - ele aparece novamente
vivo, em pleno movimento, apontando os caminhos do futuro do filme.
É, portanto, uma morte que determina a vida, um luto que
age sobre sua própria superação.
Mas
Estrada para Ythaca evita a todo custo dar a esse luto
uma imagem mais abrangente do que aquele breve instantâneo
motivador, do qual o filme parte para não mais retornar
- e lembremos que, em A Odisséia, Ítaca
é o destino na jornada de retorno do herói;
é sua casa, seu lugar para voltar após
o cansaço da guerra. Tanto Ythaca quanto Os
Monstros fazem uma jornada de purificação,
como se o cinema - com todas as batalhas perdidas antes de os
diretores começarem a filmar - precisasse reencontrar o
caminho de casa. Com essa pequena inversão de eixo, Estrada
para Ythaca deixa de ser um suposto elogio às belezas
da amizade e se firma como uma tentativa de volta àquela
primeira imagem, aquele porto-seguro, e à capacidade espantosa
da fotografia de congelar um momento - algo que o filme tentará
resgatar em vão o tempo todo, fracassando em fixar imagens
que são gravadas em inevitável movimento - mas também
de conservar uma alegria fugidia que a duração do
cinema expõe à ruína do tempo. Por outro
lado, se a fotografia é capaz de embalsamar um instante,
somente os mortos podem ser embalsamados; o cinema, ao contrário,
é vivo, demasiado vivo. Estrada para Ythaca é
um filme supostamente melancólico, infiltrado pela franca
diversão de se fazer um filme. É uma tentativa de
amortecer a incontornável alegria de se estar vivo. É
- como indicam as próprias falas - um projeto de fracasso,
de ponta a ponta.
Os
Monstros também parte de um luto, que aqui ganha uma
forma de fato fantasmagórica, em uma aparição
no banco de uma praça. Se Estrada para Ythaca
pode ser visto não só pelo que encena, mas também
pelo que compõe a sua encenação, a morte
em Os Monstros traz igual eloquência: ela vem por
meio de uma canção e de um truque cinematográfico
- uma sobreposição que cria um fantasma dentro de
um espaço concreto - citando a cena em que uma aparição
fantasmagórica de Julie London canta "Cry Me a River",
em The Girls Can't Help It, de Frank Tashlin. Os
Monstros não é tão somente o triunfo
- passageiro e de curto alcance, já que as contas continuarão
chegando após o filme terminar - da sensibilidade em um
mundo que a confina ao gueto, mas também o luto de um grupo
por uma modalidade de canção e de cinema que eles
reconhecem como belo, pleno e absolutamente impossível.
A canção remete ao cinema que a transportava - a
magia industrial da Hollywood clássica - mas aqui ela não
é mais que o fantasma de um amor passado. Mas, mais do
que uma negação do classicismo pela modernidade,
a relação dos irmãos Pretti e dos primos
Parente com a Hollywood clássica se mostra, em Os Monstros,
fruto de encantamento, desejo e um palpável assombro. Se
em Estrada para Ythaca ainda pairava a impressão
de um divórcio consciente do mundo em defesa de um certo
tipo de cinema - algo que uma leitura superficial de Os Monstros
também não terá dificuldade em encontrar
- aqui há uma inversão radical que ressignifica
o filme anterior: o maior desejo é justamente o de contar
uma história, de transformar qualquer ruído em canção,
de moldar o caos com uma estrutura e uma sensibilidade que não
apenas se expresse, mas crie sentido e se comunique. E, apesar
desse desejo, Os Monstros vem para deixar claro o quanto
essa possibilidade já está completamente perdida.
Pouco importa que o luto seja pela pouco crível morte de
um amigo, ou pela ainda menos crível morte de um relacionamento
que nunca conheceremos - a estranheza em ambos os filmes vem também
do quanto um recurso de dramaturgia tão eloquente parece
deslocado dentro do universo dos diretores; como se a jornada
de superação da mais clássica dramaturgia
assombrasse tanto como um desejo quanto por algo que não
encontra, nesses filmes, seu verdadeiro lugar.
Pois, assim como Estrada para Ythaca, Os Monstros
é necessariamente formado por suas possibilidades.
Mas essas possibilidades são menos questão de produção
- de dinheiro, de estrutura, de projeto - e mais de conjuntura
histórica. Seus diretores são filhos de seu tempo,
e não há retorno possível ao clássico
que não o transforme em classicismo, esse reconhecimento
moderno de que a única possibilidade de retorno ao passado
é se aterrando fortemente no presente, marcando uma diferença
que transforma o que é - o clássico - em um "ismo".
Se faz necessária, novamente, a jornada de volta. Pois
como retomar as convenções da canção
e do cinema hoje, depois de tantos anos de agressão, mau
uso e esvaziamento? Como é possível cantar novamente
após todo músico de barzinho ter vulgarizado esse
"em si" na linha de montagem que reproduz a "sensibilidade
coletiva" das canções de um Djavan? Como lidar
com a nostalgia de uma época que não se viveu, e
que não parece mais cabível na lógica cínica
e utilitarista dos dias de hoje? Como se entregar à dramaturgia
clássica quando se nasce em uma época em que ela
já não parece fazer sentido? O que fazer quando
a vida - a arte, as mulheres, a cerveja, as festas, o presente
e o futuro - se mostra tão abaixo daquilo que os filmes
nos prometiam na infância da modernidade?
Os
Monstros traz suas respostas cicatrizadas em seu próprio
corpo. A Hollywood clássica e a aderência às
convenções aparecem aqui muito como testemunhas
de sua absoluta ineficiência fora de seu lugar e tempo originais
- o que transforma o filme em uma inversão da premissa
de Aquele Querido Mês de Agosto, no qual o melodrama
será retomado após seu lugar e seu sentido original
terem sido reencontrados. Não adianta tentar fazer do encanto
estrangeiro algo familiar, pois uma cena de jovens gritando "Festa!
Festa! Festa!" hoje será ridícula em qualquer
lugar, mas um tanto mais ridícula quanto os jovens já
não são tão jovens assim, e sua empolgação
aparece emoldurada pelo assombro arquitetônico da orla de
Fortaleza. Os Monstros tem a claríssima virtude
de perceber essa impossibilidade - de subir cada cantada alguns
graus em sua escala de patetice - e, novamente, se realizar como
crônica de um fracasso, como uma comédia desesperada
sobre seu próprio drama de tentativa de existência. Mas
enquanto Estrada para Ythaca se tornava, com isso, um
filme até certo ponto redundante, defendendo a possibilidade
de um certo cinema do qual o filme já era prova mais que
concreta de existência, esse esforço narrativo de
Os Monstros consegue, mesmo que por estradas acidentadas,
uma das grandes qualidades do cinema clássico norte-americano:
contar uma história que se dedica a um grupo de personagens,
e a partir deles falar sobre o mundo.
Mas por mais que as negações
e a consciência de suas impossibilidades sejam essenciais,
não há arte possível quando se desvia de todas
as afirmações. E Os Monstros, fruto dessa
saudade infinita, dessa imaginação que recria a beleza
de um vaso inteiro, mesmo tendo-o visto pela primeira vez já
quebrado, encontra algo que, embora distante daquele paraíso
perdido que cantava no banco de uma praça, pulsa como uma
possibilidade digna de comprometimento. E se, como bons admiradores
de João César Monteiro, é preciso desconstruir
500 anos de História para se encontrar o que realmente é,
os diretores exorcizam o luto por um cinema impossível justamente
em sua performance de free improv, nessa possibilidade
de não só ressoar (mesmo que apenas entre um grupo
próximo de amigos), mas de se criar um momento banal, inútil
e talvez até infrutífero, mas certamente digno de
toda convicção. É ali, nos dois planos finais
- quando a câmera sai do tripé e é chamada à
dança; quando a granulação do vídeo
noturno ganha uma limpidez que clarifica gestos, detalhes e pulsões
que se escondiam na longa noite do filme - que Os Monstros
deixa de ser um perspicaz, justo e frontal acerto de contas com
seu presente e passado, e mergulha de olhos fechados nas possibilidades
do futuro. E esse tipo de mergulho é sempre algo excitante
e belo de se assistir.
Setembro de 2011
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