edição especial curtas brasileiros
2009/2010 A felicidade, finalmente por
Rodrigo de Oliveira
O
Teu Sorriso, de Pedro Freire (Rio de Janeiro, 2008)
É
muito estranho ver o Rodrigo de O Teu Sorriso insistindo para que Suzana
se ajoelhe e implore pelo omelete de champignon que ele faz tão bem, e que matará
sua fome depois do sexo, tentando contornar a humilhação de tal gesto dizendo
um “estamos só nós dois aqui, ninguém vai ver” – estranho porque absolutamente
verdadeiro. Não que ninguém esteja vendo, claro. Não só a instância cinematográfica
ali à espreita, mas tudo o que a cerca gritando o tempo inteiro pela não-privacidade:
em algum momento temos a impressão de que a câmera está em cima da cama junto
do casal, que havia ali um operador dividindo o espaço tão exíguo, e isso sem
contar a dinâmica do plano/contraplano que talvez tenha exigido repetições e reposicionamentos,
interrupções do fluxo dramático, ou ainda a direção de arte pedindo para ser notada
em toda sua artificialidade (um velho ventilador da General Electric filmado em
close, as esculturas, os chapéus, um livro de James Joyce cuidadosamente colocado
de lado no criado-mudo fingindo-se “jogado” por um dos personagens). O
Teu Sorriso parece esse filme que “ninguém vai ver” justamente porque insiste
no cúmulo do já-visto. Temos um casal, dentro de um quarto, eles transam, conversam.
Celebram o encontro, revelam algumas das engrenagens que fazem o relacionamento
funcionar, deixam margem a várias outras que nunca descobriremos, do mesmo jeito
que conhecemos em tanto tempo de cinema e, vá lá, de termos nós mesmos passado
por situações parecidas. A idade dos protagonistas talvez pareça trazer algo do
não-visto: um homem de mais de 70, uma mulher de mais de 60, e os dois estão ali
comemorando um mês de namoro. Mas, mesmo assim, Pedro Freire não parece insistir
num certo ineditismo da situação, e o filme está há milhas de ser um manifesto
qualquer sobre a beleza do amor na “melhor idade” (expressão de quem se aproxima
da velhice cheio dos dedos que O Teu Sorriso definitivamente não quer ter).
Ninguém verá porque isto, o amor, não se filma mesmo, não
está disponível ao alcance dos olhos sem algum tipo de mediação – a palavra, o
gesto, o sexo. Algo de muito potente acontece entre Rodrigo e Suzana, mas estamos
fadados a ter disso apenas aquilo que eles nos oferecem como indício material.
É só assim, talvez, que Paulo José e Juliana Carneiro da Cunha conseguem superar
o fato de que um operador de câmera divide a cama com eles para que sigam se olhando
e se tocando da maneira como fazem, porque a felicidade que dividem é secreta
e diz respeito exclusivamente a partes de seu corpo que a câmera não consegue
capturar – se este é um filme de ator o é, sobretudo, porque o filme se dá dentro
deles. Fora disso, há o processo, o ritual, e ali também, no registro de uma quase
comédia romântica, todos os casais felizes se parecem, mas (subvertendo a frase
famosa) cada um é feliz também à sua maneira justamente por preencher esse ritual
com coisas que são deles, e só deles. À
felicidade: Suzana relata a Rodrigo um conto de Katherine Mansfield, “Bliss” (que
também serve como título internacional do filme). Lá, a protagonista acorda um
dia, já na “dobra da esquina de seu próprio tempo” – tem apenas trinta anos, mas
era o começo do século XX, entenda-se – tomada por um estranho sentimento de felicidade
ensolarada, dessas que fazem as pessoas olharem para aquilo que já conhecem e
experimentam com uma sensação de primeira vez de todas as coisas. Toda a história
de Bertha Young gira em torno da tomada de consciência desse sentimento, que a
condiciona de maneira definitiva, e sobre como seu estar-no-mundo terá que se
adaptar à felicidade dali para adiante. Uma consciência que se resume, depois
de alguns revezes, na pergunta final da personagem, repetida por Suzana no filme:
“o que é que vai ser da minha vida?”. Não
há, como no conto, uma traição que transtorne o estado original, mas O Teu
Sorriso apresenta também seus revezes. Eles talvez estejam num passado a que
não temos acesso, no tempo que esses dois amigos tiveram que esperar até que finalmente
se transformassem no casal que agora são, nos códigos de relacionamento que levam
Suzana à submissão em nome do omelete de champignon só para que Rodrigo possa
lembrá-la com humor de como a situação trai o feminismo que ela um dia professara
– quando se conheceram e eram jovens militantes talvez. Mas estar feliz é flertar
o tempo inteiro com o momento em que a felicidade acabará, algo que talvez Bertha
Young desconhecesse, e isso carrega um tanto de desespero – mas, também, outro
tanto de convocação ao trabalho, ao esforço de fazer tudo dar certo. E o que se
faz com a vida depois que a felicidade é alcançada? Mais ainda, o que se faz quando
se sabe que resta pouco de vida pela frente? O Teu Sorriso
é menos um filme sobre o amor que sobre a preservação dele. Rodrigo, em algum
momento, brinca que está “grávido” de Suzana, quando esta coloca a cabeça por
debaixo de sua camisa, e mais adiante ele se condói da impossibilidade de tê-la
visto grávida e linda, de ter filhos e netos com ela. Preservar pela prole é algo
inviável, se há alguma vida que deve ser alimentada aqui é a deles mesmos, porque
está apenas neles dois a chance de fazer esta noite se prolongar por várias outras.
A memória traz aquele mesmo Paulo
José, algumas décadas antes, saltitando de um lado para o outro de um quarto parecido
com esse, com uma mulher vestida apenas em sua lingerie como esta, mas a distância
entre a Juliana Carneiro da Cunha de O Teu Sorriso e a Leila Diniz de Todas
as Mulheres do Mundo é intransponível. O tempo contado para o fim dessa alegria
é menos o da possibilidade de um rompimento mais adiante e mais o da consciência
que não se tem mesmo muito tempo pela frente. Rodrigo não toma seus remédios e,
acordando de um pesadelo, Suzana teme que o sono profundo do amante talvez signifique
algo pior. Mas ninguém morre em O Teu Sorriso, e nem poderia. Contra as
peripécias aceleradas dos anos 60, sobram aqui as carícias e os prazeres de uma
noite que parece ser vivida em câmera lenta. Um homem, uma mulher e uma noite
– mas enquanto houver manhãs como a que Pedro Freire filma nos últimos momentos
de O Teu Sorriso, a preocupação com o fim pode ficar para mais tarde. E
mais tarde, torcemos, não haverá mais câmera nenhuma entre Rodrigo e Suzana. Março
de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|