sessão cinética
Othello (The Tragedy of Othello: The Moor of Venice),
de Orson Welles (EUA, 1952)
por Luiz Soares Júnior

As máscaras de Orson Welles

Jorge Luis Borges nos deu uma definição categórica do barroco: “Eu chamaria barroca a etapa final de toda arte, quando esta se exibe e dilapida os seus meios”. No classicismo, a obra é fundação de mundo (e de mito): nos filmes de Ford, Hawks, Renoir, somos apresentados a uma comunidade, organizada em torno de seus hábitos, ritmos, gestos. O classicismo se apóia sobre esta ilusão de que o mundo está integralmente presente no campo do filme; não há nada atrás nem fora do que se dá ali, naquela cena ou sequência. No barroco, este mundo íntegro e pleno que o classicismo nos mostra, por razões ideológicas e epocais, não é mais possível. Ou melhor: não nos convence mais. Não acreditamos mais na possibilidade de que a obra de arte – algo artificial, criado pelo homem – possa restituir plenamente o sabor e a textura da vida natural, imediata. O barroco sublinha a artificialidade de tudo, o fato de que aquilo tudo é uma ilusão: ele torna explícita a forma, a construção, o factício/fictício da obra. Na falta de um mundo “total e pleno”, inacessível à representação artística, a obra se torna (ou se contenta em ser) não o cristal tridimensional onde todos os aspectos da vida e do Ser estavam contidos, mas uma urna funerária, encarregada de recolher os cacos, os fragmentos de uma totalidade de experiência à qual a arte não tem mais acesso.

Se a obra de Orson Welles é talvez a que melhor exemplifica esse caráter crepuscular do barroco, a sequência inicial de Othello contém a mais suntuosa cerimônia fúnebre dentre as tantas que encerram os filmes de Welles. Como em todos os seus filmes, é a história de uma ruína, mas de um gênero bem particular de ruína, que devia angustiar sobremaneira um mestre do artifício, da prestidigitação e da canastrice (não será tudo a mesma coisa?) como ele: estou à altura do meu papel, do papel que reservaram para mim? Em Othello, temos um herói no centro da cena, um cavaleiro temerário, corajoso; mas ele no fundo não está à altura do papel, ele não se sente bem no papel de “cavaleiro heróico medieval”. Porque é negro, mouro, um bastardo, se sabe um Outro. Othello veste a máscara que não deveria ser sua. E é Iago – que deveria estar no lugar de Othello e vestir sua máscara – o gênio secreto de toda a obra de Welles, aquele que desvenda seus segredos, o que implanta o diabinho na cabeça de Othello: “Desdêmona te trai, é lógico. Como ela poderia te amar? Você não pode ser o homem dos sonhos dela, você é um farsante, porque você é um mouro, e um mouro jamais será um cavalheiro. Você usa uma máscara. E a máscara errada.”

Todos os personagens de Welles “vestem a máscara errada”. Sua “tara” é conformar o mundo às suas fantasias, seus ideais de grandeza ou amor; fazer a máscara coincidir com a cara – o seu imaginário, com o real. Em Othello, assim como em todo Welles, essa primeira ficção ou invenção (em geral diegética) se encarrega de desencadear o circuito de ficções/ilusões que mutua e circularmente se engendram, e é o tema em torno do qual as variações do mundo imaginário dos personagens vão se atualizar na própria forma do filme, ou em seu percurso. O mundo irreal, a princípio restrito à fantasia dos personagens, se torna o próprio filme. O fracasso dos personagens aqui se traduz por um tratamento alucinatório da montagem que reflete seu desequilíbrio progressivo: o “oscilar” entre diversos sentimentos e percepções se expõe em travellings vertiginosos e num “retalhamento” do corte, como se o filme fosse feito de sobras de montagem reaproveitadas. Neste sentido, é o filme que melhor exemplifica o barroquismo de Welles como um “expressionismo do fragmento”: a visão interior do personagem não é expressa como se “fôssemos sempre o mesmo homem a todas as horas”, mas segundo os cambiantes estágios de humor que ele sofre. Através de bruscas rupturas espaço-temporais não apenas visualizamos a confusão mental do protagonista, mas, sobretudo, na alternância constante de posições dos personagens no espaço horizontal ou mesmo vertical (à medida em que o jogo de gato e rato do filme avança, Welles coloca Othello ora abaixo, ora acima de Iago e de Desdêmona, jamais perfilando-os perfeitamente numa mesma linha), a sua posição num confronto ético.

Welles: “Quase todas as histórias sérias no mundo são histórias de fracasso, e fracasso com a morte inclusa. Mas nelas geralmente há mais paraíso perdido do que propriamente derrota”. Othello, com sua montagem sincopada e sua precipitação alucinógena para o abismo, estranhamente parece ter algo em comum com A Marca da Maldade, filme de ritmo bem mais sereno, um lento “decair”. Ambos são histórias em que a “ruína” é acompanhada por um stacatto lírico: Othello, Desdêmona e sua Chipre inexpugnável contra a invasão turca; Quinlan, Tanya e a América irrecuperável e nostálgica para Quinlan. Como nos melhores relatos de desengano, a miséria final dos personagens é o refúgio (caduco embora), não do mundo que foi e que hoje não é mais, mas do que poderia ter sido: a utopia da Natureza-morta.

Dezembro de 2009

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