in loco - cobertura dos festivais
O Ultraje (Autoreiji),
de Takeshi Kitano (Japão, 2010)
por Eduardo Valente
A
violência da autoria
O Ultraje nos mostra um autor que já foi ao inferno e voltou.
Nos seus últimos 3 filmes (Takeshis’, Glória ao Cineasta
e Aquiles e a Tartaruga), Takeshi Kitano demonstrou uma
disposição bastante incomum aos cineastas do primeiro time do
mundo: a de se colocar em questão publicamente, através de sua
própria obra. Sua trajetória meteórica ao topo, que lhe rendeu
um Leão de Ouro em Veneza antes mesmo de completar dez anos como
cineasta, seguida com enorme devoção, pareceu colocar-lhe num
ponto de crise sobre o que o movia, levando a este corajoso passo
atrás - passo que o distanciou do público, de boa parte da crítica,
e até mesmo dos festivais, onde acabou ficando relegado nos últimos
filmes a vagas “hors concours” (algo do tipo “ok, vamos perdoar
essa sua excentricidade, pois queremos ter você por perto”). Nesse
sentido, a volta dele à “primeira divisão” (no caso, a competição
em Cannes) dar-se com este O Ultraje é altamente simbólico
do que isso pode significar sobre a recepção geral da sua obra,
mas também pode ser visto como um gesto tão fortemente irônico
e agressivo da parte do diretor quanto o de seus filmes anteriores
– configurando-se numa curiosa mistura de aparente conformidade
e enorme ousadia.
Isso porque, ao mesmo tempo em que o filme marca a volta de Takeshi
(o cineasta, mas também o ator) ao ambiente que lhe rendeu fama
internacional (e o Leão de Ouro para Hana-Bi) - ou seja,
os filmes com protagonistas ligados às gangues japonesas yakuza
- ele é também um exemplar desse tipo de filme que vai bastante
no sentido contrário dos que Takeshi havia feito antes. Não há
em O Ultraje nenhuma sombra da poesia lúdica que invadia
eventualmente um Sonatine ou o próprio Hana-Bi,
e muito pouco do humor de um Brother. De fato, este seu
novo filme é de um desencanto completo com o próprio universo
retratado, de onde desta vez não sobressai nenhum sentido de honra,
amizade, nem mesmo um improvável heroísmo. Mesmo a figura interpretada
por Takeshi, talvez a mais simpática ao espectador, está longe
de ser configurado como um protagonista: passa muito tempo fora
de tela, é capaz dos mesmos atos de traição e violência injustificados,
e não terá fim diferente de nenhum dos seus colegas.
O
Ultraje, de fato, é basicamente composto de duas horas de
traições e golpes mútuos entre vários braços de uma organização
mafiosa, que, invariavelmente, desaguam em cenas de uma violência
impressionante (a maior parte delas filmada de forma absolutamente
frontal, sem nenhum espaço para prazeres estéticos a partir delas).
O filme parece, ao final, uma forma de Takeshi nos dizer: “ah,
vocês querem gângsters violentos da Yakuza? Pois, ok, vamos a
eles”, e ao mesmo tempo continuar com sua crise em praça aberta
– algo que o faz um dos autores mais instigantes no cinema hoje,
justamente por estar tão abertamente desagradado com seu próprio
posto dentro dele. Trata-se de um filme tão desencantado, que
termina por deixar um gosto ruim na boca, não só pelo seu final
(que nos indica que, sim, a traição pode dar certo – “o crime
compensa”), mas pela experiência francamente desagradável que
Takeshi faz com questão que seja assisti-lo. Não por acaso,
já em Cannes a crítica institucionalizada não se
mostrou nada inclinada a abraçar um filme como este - que, sem
maiores surpresas, saiu de lá também sem qualquer
prêmio. De fato, dá para se pensar que, como boa parte do cinema
de gênero mais radical, se fosse assinado por qualquer outro cineasta
dificilmente ele receberia espaço na nobreza da competição
do Festival.
Maio de 2010
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