O Vencedor (The Fighter),
de David O. Russell (EUA, 2010)
por Pedro Henrique Ferreira
De um domínio a outro
Desvincular-se de uma mitologia heróica, abrir
espaço no mundo para o surgimento de um indivíduo que ainda estaria
preso àquele que o ensinou, resgatar seu potencial individual
da submissão às figuras que o cercam e lhe sugam: estes parecem
ser os desafios de O Vencedor, ao acompanhar a libertação
de um jovem boxeador dos grilhões de seu irmão, um ex-mito dos
ringues na comunidade da pequena cidade Lowell e que, agora, parece
lhe ser um sanguessuga.
A jornada de um boxeador
contra sua eterna dependência e baixa auto-confiança está armada
e, se parasse por aí, trataria-se apenas de mais uma fábula da
superação heróica norte-americana - que, diga-se de passagem,
já atingiu resultados primorosos no cinema do gênero. Mas em determinado
momento do filme, O. Russell parece se dar conta que o boxeador
mais novo não pode superar as
adversidades por conta própria, e precisará recorrer ao irmão
que havia deixado para trás após inúmeras peripécias. É neste
gesto que torna-se mais clara a perversão que O Vencedor
executa despercebidamente: ao libertar o irmão mais novo da sombra
do mais velho, termina por prender o mais velho à narrativa do
mais novo. Esta perversão é tanto maior na medida em que resulta
não apenas num arco dramático problemático, mas um conjunto de
resoluções estéticas e uma perspectiva política, desta indissociável,
onde se denota a absoluta incapacidade de David O. Russell em
lidar com mitologias do passado, com conflitos insolúveis, e,
sobretudo, com o exercício de estabelecer um ponto de vista menos
violento à natureza de cada personagem.
Assim, características que compõem o lendário
Dicky (Christian Bale) – a genialidade esportiva que o elevou
ao status de lenda local, e da qual o irmão diz necessitar,
as razões primeiras que o levaram às drogas e sua verve caótica
– são aspectos que interessam apenas na medida em que afetam,
para o bem ou para o mal, a linha narrativa à luz de sua figura
central – sua escalada à vitória e ascensão global. Orientada
pela figura central de Micky (Mark Walhberg), em nível estético,
o filme vem a tratar todas as figuras com as quais tem de lidar
como um estereótipo de seu drama íntimo. A prerrogativa resulta
em uma misè-en-scene onde confrontam-se a câmera trêmula,
que se quer intimista, e a estereotipia de seus personagens. A
estereotipia, que na maioria das vezes serve ao exame de tipos,
à elaboração de situações sociais panorâmicas e ambíguas que obrigam
o espectador a rever seu posicionamento em relação ao mundo na
mesma medida em que se identifica com estes modelos, aqui vira
apenas um recurso de discurso direto. A este registro, soma-se
um outro: a armação rígida da cena criando simbolismos imagéticos
fechados que intencionam ser tão diretos e apelativos à atenção
quanto o anterior. Assim, O Vencedor passeia por artifícios
formais das mais diversas naturezas, criando um emaranhado estético
de atrativos que apelam ao público por comunicação. Quer-se comunicar,
é perceptível. Mas o que é que se quer comunicar?
Engraçado
como a narrativa conspira diretamente às pretensões de Micky sem
exigir dele um movimento sequer que seja por conta própria, um
enfrentamento que deva realizar por si só. Os conflitos se resolvem
sem que ele seja o catalisador. Seu único gesto absolutamente
individual está em, a determinada altura do filme, pedir, inseguro
como sempre, uma conciliação dos dois pólos em cujo conflito padece.
Os conflitos internos da comunidade de Lowell, plural desde sua
formação por imigrantes irlandeses, poloneses, dentre outras culturas,
devem apaziguar-se, harmonizar-se para que sua história de vitória
possa acontecer, para que a cidade venha a adquirir prestígio
nacional. E o que talvez soe mais paradoxal em um filme de boxe
é que a própria idéia de conflito, de resguardo dos indivíduos,
de mútua sobrevivência sem a submissão a uma causa maior, seja
inteiramente abolida para que seu personagem possa prosperar,
vencer. De onde deduz-se o verdadeiro emblema-problema ideológico
do filme: vencer interessa mais do que lutar.
O
mais interessante em
O Vencedor é a imagem de um Dicky inexistente,
mera especulação, que poderia ter sido caso não fosse inteiramente
afogado pela vitória de seu irmão, caso não fosse adestrado. Alguém
de quem o filme, em sua unilateralidade involuntária, não consegue
senão reter um caráter abstrato, formal, estereotipado. Assim,
O. Russell adentra uma senda de diretores holywoodianos que parece
crer que o avanço estético da arte cinematográfica acontece, dentro
da indústria hollywoodiana, pela assimilação de características
meramente formais. Filia-se, por exemplo, ao próprio Darren Aronofsky
– que, aliás, teria sido o diretor do projeto antes de Cisne
Negro surgir. A esta espécie de arte, resta dizer que, se
isto precisar acontecer deste modo, talvez seja melhor espelhar
Lowell menos pela estória que a retirou do anonimato e mais por
sua estória de formação interna e plural, o palco de junções das
diferentes potencias que lá sempre existiu. O esforço de uma arte
maneirista sempre vem no sentido de abraçar um conflito, deixando
a individualidade de suas partes intactas. Neste sentido, O
Vencedor executa o extremo oposto.
Nos últimos anos, o tema da fraternidade adquiriu
uma conotação outra daquela que se encontra em, por exemplo, Rocco
e seus irmãos. No filme de Visconti, existe um conflito determinado
entre os irmãos que, ao chegarem à cidade Milan, lutam entre si
em uma relação ciumenta por causa de uma mulher. Quer dizer, há
um objeto exterior que parece validar a luta. Já em
O Vencedor, tanto quanto em outros filmes
que desde a década de 90 abordaram o tema, como Adeus ao Sul,
de Hou Hsiao Hsien ou Distância de Nuri Bilge Ceylan,
a luta sequer se desenha. Especula-se que, agora, os termos do
problema são um pouco diferentes. Os dois irmãos pertencem a mundos
diferentes (ou, quando do mesmo mundo, são ainda personalidades
muito diferentes). Mas o irmão é aquele que simplesmente não pode
ser abandonado. Em Adeus ao Sul, um irmão que não abandona
jamais o outro, não importa o quão irresponsável ou louco ele
seja, é por ele mesmo, um tanto quanto conscientemente, levado
à trágica fatalidade. Em Distância, o irmão mais velho
recusa-se a ser o sustentáculo do mais novo e rompe a relação,
ainda que o apego e a identificação sejam de algum modo inevitável.
O que ambos os filmes trazem em comum é uma irresolução deste
dilema. O Vencedor quer resolvê-lo, mas parece não perceber
que, ao tentá-lo, cria apenas duas ingênuas relações de domínio
que variam de um irmão para o outro. A chave inevitavelmente recai
para aquela mesma inevitabilidade da qual Hou já tomara consciência,
isto é, que um dos dois terminará por sucumbir. A pergunta permanece
em aberto: há mesmo solução arbitrária para o drama que O Vencedor
busca resolver?
Março de 2011
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