eletrônica
Páginas da Vida: estratégias
de legitimação da ficção
por Cléber Eduardo
Depoimentos
de pessoas reais, em sintonia com situações enfrentadas por personagens
fictícios, não são novidade em telenovelas: Gloria Pérez valeu-se
do recurso em O Clone e, de forma mais integrada à narrativa
ficcional, em um programa de tevê dentro de América. De
qualquer forma, a exploração dessa estratégia no fim de cada capítulo
de Páginas da Vida (novela de Manoel Carlos, com direção
geral de Jayme Monjardim) virou questão do dia.
A suposta polêmica foi levantada pela imprensa
após o depoimento de uma senhora celebrando o caráter sexualmente
libertário de sua descoberta da masturbação. Não entremos no mérito
moral do uso desse testemunho, julgando se ele é ou não pertinente
dentro da grade de uma televisão aberta. O interesse aqui não
está no conteúdo das experiências narradas, mas na própria estratégia
de vinculá-las à ficção.
Nos capítulos observados para elaboração deste
artigo, o método foi engessado. Os depoimentos exibidos ao final
de cada um deles giram em torno de algum conflito vivido naquela
noite: a) Na novela, marido perde esposa. No depoimento, um viúvo
fala da experiência de seu luto; b) No folhetim, uma personagem
é traída pelo amante. No testemunho, ao final, uma mulher lembra
do adultério sofrido 25 anos antes.
O engessamento está nesse esquematismo: ficção
bebe da realidade e realidade confirma a ficção. Sabemos durante
qualquer capítulo, ao menos até agora, que o depoimento daquela
noite, em alguma medida, será sobre algum conflito colocado na
tela. Não sabemos até onde a escalação deste ou daquele depoimento
é condicionado pela estrutura narrativa-ficional de Manoel Carlos,
e até onde esse ou aquele depoimento condiciona a formatação temática
do capítulo. Não importa. O que nos interessa é essa necessidade
da ficção de pedir a benção da imagem da realidade para ser aprovada
como “representação fiel do real”. A legitimidade do acontecimento
ficcional está na revelação de sua origem: evidências verbais
da vida real. No entanto, se a ficção mostra os personagens atolados
em traumas e afogados em lágrimas, os depoimentos, mesmo quando
também pontuados por lágrimas e gargantas apertadas, tematizam
a superação do trauma. Manoel Carlos parece nos dizer que sua
overdose de infelicidade, ao final, será contornada pela capacidade
de resistência do humano à dor.
Sem essa mesma dinâmica terapêutica, mas com ambições
sociologizantes, o artifício dos depoimentos também foi usado,
recentemente, por Alexandre Stockler, no longa Cama de Gato.
Neste, antes e após as imagens ficcionais, jovens falam para a
câmera sobre questões expostas no filme. Quando de sua estréia,
escrevi na Contracampo:
“Os temas sobre os quais os jovens falam no começo serão encenados
ficcionalmente a seguir, e as falas exibidas no desfecho são
sintonizadas com a experiência limite vivida pelos personagens.
Temos assim uma introdução e uma conclusão, no estatuto do documentário,
que ambicionam legitimar o painel sociológico da ficção. Esta
se torna, então, mera ilustração de uma pesquisa de campo. É o
escudo do filme contra a possibilidade de desvincularmos encenação
e modelo real.”
Não seria um despropósito usar as mesmas palavras
para Páginas da Vida. Como em Cama de Gato, os depoimentos
são de pessoas anônimas, não no sentido do anonimato da “não celebridade”,
mas de seu significado literal: elas não têm nome, não têm contexto,
não têm condição social, não têm origem. São categorizadas em
poucos segundos, apenas por conta de seus traumas e conflitos.
São o seu sofrimento. Constata-se, a partir dessa escolha, que
o espaço da individualização, mesmo dentro de uma codificação
de clichês e formatações massivas, está restrito ali ao domínio
das situações e dos personagens ficcionais. Os rostos, vozes e
palavras dos depoimentos, por serem tratados como matriz inspiradora
da telenovela, pertencem à lógica da condensação da estatística:
cada uma das pessoas ali ouvidas e mostradas falam por milhões
de outras.
Tenta-se a universalização, justamente, pela ausência
da individualização (nome, classe social, origem). Ninguém ali
é construído pela estrutura da vida. Cada um é a própria vida,
de maneira ontológica, sem ligações quaisquer – a não ser com
a novela. Não há nenhum indício, também, da relação entrevistado-entrevistador,
como bem notou, em declaração ao Jornal do Brasil de 21 de julho
de 2006, a diretora Cristiana Grumbach (de Morro da Conceição).
Nenhuma pergunta é ouvida, nem se vê para quem falam. Olham para
a lente da câmera, não para alguém ao lado do aparelho. Mas, como
essas pessoas são escolhidas, como são motivadas, provocadas?
Ganham cachês? São induzidas a algum tema, ou saem falando o que
bem entenderem para a câmera?
É
necessário relativizar, nesse sentido, a comparação com Cama
de Gato. No filme, ouvimos frases: retalhos verbais captados
em lugares públicos de São Paulo, extraídos de jovens que estavam
em bares ou na rua, à noite, quando a câmera chegou para interpelá-los.
Tenta-se captar um sintoma de realidade com aparência de improviso,
de reação imediata, de pensamento ainda não formulado, mas em
gestação naquele momento. Em Páginas da Vida, em vez de
reações com frases, ouvimos testemunhos. Em entrevistas, Manoel
Carlos afirma que as pessoas escolhidas são catadas na rua, como
em Cama de Gato, e convidadas a falar de suas vidas. Não
parece – muito pelo contrário. Talvez pela maneira 3x4 de serem
captadas, com o fundo do plano fora de foco, sem sabermos onde
estão esses entrevistados, sente-se ali algo de programado, de
depoimento agendado. Tudo é mais organizado, menos selvagem, mais
filtrado – apesar da celebração da masturbação. A impressão de
realidade de Páginas da Vida, digamos, é mais digerível
que a de Cama de Gato – embora, nessa afirmação comparativa,
não haja elogio ao filme ou decretação da superioridade de seu
uso dos depoimentos em relação ao da telenovela.
Essa necessidade de justificar a verdade da ficção
pela verdade fora dela talvez seja uma forma de compensar a anemia
da “potências do falso” pela “vontade de verdade”, para tomar
de empréstimo as expressões de Nietzsche e a linha de raciocínio
do ensaio Reality Show – Um Paradoxo Nietzschiano, da redatora
cinética Ilana Feldman (apresentado no Colóquio Internacional
Nietzsche e Espinoza). Há um descompasso na telenovela entre as
declarações de Manoel Carlos, que diz se inspirar em sites de
notícias e documentários, e os contatos com o real da encenação
propriamente dita. Se o autor do texto parece querer encontrar
seu realismo de folhetim na imitação da vida, escrevendo situações
ocorridas, possíveis de ocorrer ou tiradas de outras organizações
narrativas (o jornalismo, o documentário), as imagens na quais
sua escrita é transformada “desrealiza” essa relação com o real.
Já
está bastante naturalizado para nossa percepção o artificialismo
dos espaços e da iluminação das cenas gravadas no Projac (em apartamentos,
ruas e bares sem pulsação), como se víssemos uma peça calcada
apenas nos diálogos e nos atores, sem nenhuma ambição da encenação
em si. É ainda impressionante, porém, a artificialização de lugares
reais. Em passagens nas quais a câmera é apontada para esses espaços
existentes fora da cidade cenográfica da Globo (a Pizzaria Guanabara,
no Leblon, ou ruas da Gávea), temos a forte impressão de não
termos ainda saído do Projac – e desconfiamos se o tal lugar é
mesmo real ou invenção de computação gráfica. Até mesmo as tomadas
aéreas do Rio, pela maneira com a qual tentam integrá-las à narrativa,
nos dão a ver imagens mortas, que parecem mais pinturas eletrônicas,
ao invés de imagens captadas de um espaço vivo.
A organização dos ambientes para a ficção é tamanha,
tão produzida, com figuração tão anti-natural, que o pretendido
realismo tem efeito inverso. Resta aos depoimentos procurarem
compensar essa impotência do falso com algum sinal de verdade,
embora, por conta da maneira de captar essas “cabeças falantes”,
até mesmo esses sinais verbais da realidade pareçam simulações
roteirizadas e registradas em estúdio. Ao contrário do que se
costuma dizer, já como clichê, não há nenhum andamento de uma
crise da ficção (como nos mostra a demanda por O Senhor dos
Anéis, Harry Potter, Homem Aranha, Se eu
Fosse Você), nem uma sede pelo documental (como está explícito
no público de muitos deles nos cinemas do Brasil). O que há é
uma “ausência” de crise e problematização da representação (sim,
ausência), um acomodamento de determinados núcleos de produção
a certos padrões de como se gravar ou filmar (daí, a ausência
de crise), de como se modelar as interpretações, de como encontrar
a verdade nas situações fictícias, o que é menos um problema do
que se coloca lá na tela para vermos e mais uma incompetência
para suspender nosso descrédito em relação aos acontecimentos
vistos. A verossimilhança não está nos acontecimentos. Está em
como se escolhe mostrá-los.
Uma crise da representação, portanto, seria mais
que bem vinda. E talvez levasse o uso dos depoimentos a se tornar
não mais necessário para suprir a mediocridade da encenação que
busca se passar por realidade. Ou Beto Brant precisou entrevistar
gente corrupta da elite e criminosos da periferia para legitimar
O Invasor?
.
editoria@revistacinetica.com.br
|