plantão do YouTube
Homenagem a Jack Palance
por Diego Assunção
O cinemascope,
o funeral e a serpente
A projeção termina. As luzes gradativamente vão se acendendo no
interior de uma cabine de exibição cinematográfica. Fritz Lang
fala a respeito do cinemascope para o roteirista interpretado
por Michel Piccoli (“não serve para filmar pessoas, apenas funerais
e cobras”, diz o diretor alemão) enquanto o produtor interpretado
por Jack Palance se levanta, caminha um pouco atordoado com as
imagens que acabara de ver e se depara com o projecionista carregando
latas de películas do filme. Se o cinemascope só serve para filmar
funerais e cobras, Godard faz dessa inesquecível cena uma bela
celebração do cinemascope e sua utilidade:
Jack
Palance caminha sorrateiramente, seus pés colados no chão nos
dão a impressão de estar se arrastando pela sala de projeção como
uma víbora, mas quando cutucado pelas imagens criadas por Lang
ele simplesmente dá um bote mortal nas latas do filme e as derruba
das mãos do inocente projecionista. Ele circula em volta de Lang
e o cerca enquanto o culpa de infidelidade ao roteiro (ao fundo,
abaixo da tela do cinema, tem-se a inscrição “o cinema é uma invenção
sem futuro”, creditada a Louis Lumiere). Palance caminha pelas
extremidades do cinemascope, celebrando a morte de sua vítima
– o cinema, representado nas latas de filmes que ele chuta e joga
pelos ares; representado na pele de Fritz Lang, que não consegue
convencer o produtor de que é natural que o resultado final, em
imagens, tenha ficado diferente do programado, o roteiro.
O cinema (esse morto) é desovado no beco sem saída
da sala de projeção – nunca o cinemascope pareceu tão apertado
– e a contribuição de Jack Palance para o sucesso dessa cena não
pode ser medida ou contada, pois Jack Palance faz ali o produtor
incorporar um dos Deuses que tanto se identifica para decretar,
interromper, o filme que vinha sendo feito por Fritz Lang. A cena
toda não é continuada pela edição do vídeo no Youtube, mas o final
dela é conhecido: Palance revelando sua divindade, seu talão de
cheques.
* * *
E o Oscar vai para...
Indicado ao Oscar de “ator coadjuvante” pelo seu
papel em Amigos, Sempre Amigos, Palance, em 1992, concorria
com Tommy Lee Jones (JFK), Harvey Keitel e Ben Kingsley
(ambos pelo filme Bugsy) e Michael Lerner (Barton Fink).
Se o merecimento ao prêmio é questionável, isso não vem ao caso,
pois Jack Palance fez de seu trajeto – da saída da cadeira até
sair do palco com o prêmio – uma performance digna de vários Oscars:
ele beija a mulher ao seu lado, caminha sorridente até o palco
iluminado por holofotes e mostra estar sob controle ao ajeitar
as mangas de sua camisa. A “cena” até esse ponto não se diferencia
de outros agradecimentos (“lá vai mais um velhote receber um prêmio
antes de sua morte”, pensamos precipitadamente), mas basta ele
pegar o seu Oscar das mãos de Whoopi Goldberg e se dirigir ao
púlpito, com a cabeça abaixada e um sorriso irônico nos lábios,
para se notar que esse agradecimento não seguirá as convenções.
Palance
deixa o falatório de nomes de lado para tocar, com seu humor mordaz,
em um tema delicado em Hollywood: a desconfiança dos estúdios
em relação à capacidade de velhos atores continuarem atuando.
Talvez relembrando de uma cena ou outra de O Desprezo,
de Jean-Luc Godard, Palance se distancia do púlpito e mostra que
ainda há chamas acessas em seu corpo ao fazer exercícios de flexão
com apenas um braço. Ele ocupa todo espaço possível, afinal ele,
mais do que ninguém, sabia que aquele momento era dele, e retorna
ao púlpito para fechar seu discurso com um comentário que muitos
devem ter engolido a seco: “No meu primeiro filme, em 1949, o
produtor chegou para mim e disse ‘Jack, você ganhará um Oscar’.
Quarenta e dois anos depois, ele estava certo. O filho da puta
sabia”. Com a música subindo, só o que restava era aplaudir. De
pé.
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