Palavra (En)Cantada, de Helena Solberg (Brasil, 2008)
por Rodrigo de Oliveira

Da ignorância do bom gosto

No início era o verbo: o verbo dos “trovadores”, papel do qual se inflama um Lenine aqui, uma Adriana Calcanhoto ali, e lá vamos nós com imagens medievais de trovadores e partituras passando animadas pela tela. É o início de uma misteriosa investigação em torno da palavra escrita, da língua portuguesa e sua beleza funcional para a música, terreno para a reprodução de uma série de platitudes (acredite-se ou não, alguém tem a ousadia de dizer que “somos um povo mestiço” a certa altura, como se grande achado do pensamento sociocultural isso fosse). A estrutura de Palavra (En)cantada é tão óbvia e anunciada que pensamos o tempo todo que uma hipotética transcrição de tudo o que é dito no filme poderia servir muito bem de palestra na boca de um desses nossos especialistas em coisa nenhuma, talvez um Nelson Motta da vida. E o grande desserviço talvez resida aí, numa forçada relação de causa e efeito, de ação e conseqüência, que talvez explique guerras e crises financeiras, mas que está longe de dizer algo sobre o que liga Tom Zé a Dorival Caymmi – ou melhor, o que os liga que não a própria evidência das músicas, que estão lá para falar por si sem nunca terem precisado desse didatismo de almanaque para apresentá-las.

Nos créditos, os nomes dos músicos surgem como se atores num filme de ficção, em seguida vemos Maria Bethânia em seu eterno discurso do limite entre a cantora e a atriz, e daí pulamos para a encenação de João Cabral de Melo Neto por um grupo de atores-cantores, e se chegamos em João Cabral, chegamos no Nordeste, e está lá Lirinha para falar de sua escola nas feiras de repentistas – mas o rap paulistano, ora vejam, nasceu também do repente e do cordel! – e assim vamos, ad eternum. Nesse culto da beleza de sermos brasileiros presenteados com esta música maravilhosa e seus compositores fantásticos, não por acaso sobra pouco espaço para se chegar à música, de fato. Mas, num documentário de cabeças falantes que está desde o começo tentando dar dimensão pictórica à enxurrada de informações que arregimenta (uma montagem de fotos de João, Tom e Vinícius quando se chega ao momento histórico da bossa nova? Sim, nós temos), é mesmo esse deslumbre que Palavra (En)cantada tem com a suposta “especialidade” de seus depoimentos o dado mais espantoso. Porque para onde quer que se olhe o filme de Helena Solberg não faz mais que ecoar momentos em que vimos aqueles mesmos músicos em condições de tempo, e cuidado narrativo, muito melhores.

Para darmos um exemplo, Bethânia chega a repetir seu bordão de que “música é perfume”, aquele mesmo que deu nome a um documentário bastante mediano de Georges Gachot. De Bethânia Bem de Perto a Pedrinha de Aruanda, passando pelos diversos extras de seus DVDs, é natural que a cantora tenha seu repertório de convicções definido por uma dúzia de linhas de pensamento firmes e conhecidas, mas o que é incompreensível é que Helena Solberg se contente em tirar de Bethânia apenas isso – e não há nada pior para um filme que supostamente investiga a dimensão da palavra escrita, falada e cantada do que enxergar uma força com a grandeza de Bethânia e ver ali não mais que um vernáculo onde espelhar sua própria miséria intelectual. Quantas vezes já não vimos Tom Zé ser absolutamente genial, intempestivo e vibrante ao falar de música, ou o que resta de fato a ver em Chico Buarque que ele próprio já não tenha exposto nas dezenas de horas que preencheram a série de tevê que lançou dois anos atrás? Nem mesmo com o material de arquivo Palavra (En)cantada consegue escapar da preguiça: veremos as mesmas imagens dos Mutantes que ilustram qualquer reportagem de telejornal sobre o grupo, veremos o mesmo número de “Maracatu Atômico” com Chico Science e Gilberto Gil no Abril Pro Rock, e a promiscuidade chega ao limite quando são utilizadas seqüências que ficaram de fora de outros documentários melhores (há um longo trecho sobre o rap no Rio que é chupado dos arquivos de L.A.P.A., ou ainda os mesmos planos aéreos da periferia que já viramos em O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas).

Com alguma surpresa, ouviremos Adriana Calcanhoto falar, quase no fim do filme, que a questão hierárquica e valorativa entre música e poesia é infértil, e que sua vida é curta demais para perder tempo com aquilo. Louvável esse momento de autocrítica admitida dentro da própria narrativa, não fosse o fato de que Palavra (En)cantada simplesmente não resiste à visão da infertilidade: o filme vai lá e se esbalda nela até não poder mais. Mas para testemunhar isso, sinceramente, nossa vida é simplesmente curta demais. Fruto desses impulsos natimortos que volta e meia abatem cineastas brasileiros interessados em alimentar o circuito da ignorância que se forma em torno dos “assuntos de bom gosto e delicadeza”, Palavra (En)cantada é sobre tanta coisa que acaba sendo sobre nada em particular, e esse só não é um pecado menor porque o filme acredita, de fato, que está lidando com grandes questões, que está mergulhando em fissuras artísticas e desvendando o que quer que seja sobre a relação entre a música e a poesia (ou, no limite, se Chico Buarque é músico ou poeta – já fomos agraciados aí com bom gosto e delicadeza o bastante).

Abril de 2009

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