em primeira pessoa
“Para Huillet, para Straub.”
por Felipe Bragança

Daniele HuIllet faleceu no mesmo dia (09.10) em que eu ia rever Juventude em Marcha, último  filme de Pedro Costa, no Cine Odeon, Rio de Janeiro. O mesmo Pedro Costa que tinha ido a França acompanhar Huillet e seu marido Straub, parceiro de décadas, na remontagem de Sicília! em um exercício do ateliê-escola Le Fresnoy.


ONDE JAZ O TEU SORRISO? (Où gît votre sourire enfoui?) – dir. Pedro Costa (Portugal/ França, 2001).

Corta:
Câmera lenta, de trás para a frente, fotograma comendo fotograma.
Anotação inicial: o sorriso aqui é uma resistência. De dissidência. Juntos desde 1954, Danièle e Straub realizaram vinte filmes. Muitos deles, adaptações ou estudos literários - Mallarmé, Duras, Kafka e Holderlin, foram alguns dos nomes visitados.

Corta:

De volta ao filme -3, 2, 1:

Plano 1: As “árvores que andam” do último diálogo são as imagens estáticas que se movem NÃO POR NATURALIDADE, MAS POR TEIMOSIA. Por ENFRENTAMENTO.
Plano 2: A precisão do corpo-filme pára diante da idéia.
Plano 3: A imagem ou a idéia? Ambas.

ONDE JAZ O TEU SORRISO?

É um filme sobre a precisão do espírito, sobre a exatidão do corte e sobre o mistério da imagem como resíduo da vida. Sobre a montagem como encontro com a vida e sua ruptura e reafirmação pelo que se ausenta.

“Deveres novos, quero deveres novos” – grita a humanidade vivaz e arredia, procurada e cultivada no filme que se constrói dentro do filme.
Straub falando muito, irritado, resmungando.

Corta:
Huillet como um vulto de calma e rispidez, com uma tesoura em riste, indo onde o caos de Straub parece não ir.

TELA NEGRA

Huillet monta Straub, é o que parece. Organiza e afirma o que no caos dos resmungos dele aparecem como um excesso de vontade e de insurreição.

Corta:
Huillet ali, quase sempre de costas para a câmera de Pedro, quase sempre falando em off, é uma espécie de anjo negro a habitar, a digerir as projeções que Straub faz do sentido e da lógica de cada coisa, de cada gesto, de cada ângulo de olhar.
Straub se consome, Huillet sintetiza - atinge.

O filme de Pedro Costa nos deixa ver o cinema sendo construído por dentro de cada obsessão, crise, dúvida, teoria mais imbricada e pura intuição de um encontro de forças. Cada embate e cada generosidade de olhar. Como uma máquina ou como um bicho.

Straub narra o começo de sua paixão por Danièle, no mesmo tom com que narra suas memórias de cinema. Diz que no começo, o que gostava nela era alguma coisa que não sabia o que era – porque ele não entendia o que ela falava, não entendia sua língua. (Logo ele, obcecado pelas palavras como afirmadoras do espírito, se apaixonar por um vulto?...).

Enquanto Straub fala, Huillet está ao fundo na moviola, cortando, calmamente, puxando a película, encontrando o prumo da imagem para dizer ao homem-que-fuma: “Está pronto. Aperte o cinto. Posso seguir?” e pôr o filme a correr na máquina.

O cinema de Huillet e Straub (de tanto atravessamento histórico e de que tanto já se falou – ainda que não o suficiente), encontra aqui no filme de Pedro Costa  esse teatro de não-atores sobreposto sobre si mesmo. Essa vontade de história construída sobre ela mesma e tonificada como interrupção e política dos detalhes.
E é um tesouro. Uma jóia. Como poucas:

Para quem ama cinema e montagem,
para quem ama a palavra no cinema,
para quem ama a busca do tempo como carne do cinema.

Um cinema quer ser ainda território do artesanato, do apuro, do gesto quase invisível que se esconde nas entrelinhas desse sorriso. Desse sorriso que é de escárnio e de puro encantamento: que se desvia para fora do cinema como norma, como mercado de eficiências, como exercício de egos e glamour. Filmes, façamos filmes!

Corta:

O plano final:
Huillet sobe por uma escada pra ver a projeção do filme e deixa Straub, sozinho, do lado de fora da sala, quieto. É uma imagem de fazer a garganta engasgar, agora revista, agora reencontrada.
Enquanto ela vai metodicamente ver o filme, ser engolida pelo cinema, Straub fica ali cultivando aquela pequena solidão, sentado na incapacidade de ver o filme pronto, acabado, já-dado mais uma vez. É uma espécie de certeza que ele leva. De insatisfação que só não o desfigura, porque ouvimos os passos dela se afastando, cuidando dele, como um compasso.

Porque em algum lugar nos olhos ausentes de Huillet, sua montadora, sua montadora (acima de tudo!!), Straub parece saber: o filme está acontecendo. Do jeito que ele queria. Do jeito que ela queria. Embora ele continue insatisfeito e irritado... Porque ela está lá, dentro da sala, para ver (e lhe mandar calar por um instante).

Rio de Janeiro, 07.11.06


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