Paris, Te Amo (Paris je t'aime),
de 20 diretores (França, 2006)
por Cléber Eduardo

O que é um filme?

A origem do termo “filme” não se refere à sua definição estética ou narrativa, enquanto linguagem, mas exclusivamente ao material no qual é registrado: a película. Por essa circunscrição original, qualquer imagem em película é filme. Na era digital, porém, tal utilização, se não caducou completamente, anda despencando. Qualquer tentativa de definição ou redefinição do que é um filme, segundo nossos olhares contemporâneos, inevitavelmente terá de lidar com o desafio de encarar as amplitudes e os limites narrativos e estéticos da definição, não o material de captação (película, mini-dv, celular, HDTV).

Mas o que é um filme? É um conceito a partir do qual desdobram-se as imagens? Ou é qualquer imagem somada a outra, qualquer imagem que se estende no tempo, qualquer imagem aleatória? Todo filme é uma soma de imagens ou uma única imagem somada no tempo – mas toda soma de imagens e toda imagem somada no tempo é um filme?

Composto de 18 pedaços autônomos (porque não precisam dos demais para existir), Paris Te Amo suscita perguntas decorrentes da primeira pergunta desse texto. Ele é a soma de 18 filmes realizados por uma série de diretores-atrações (Walter Salles, Alfonso Cuaron, os imãos Coen, Gus Van Sant, Wes Craven, Olivier Assayas, Alexandrer Payne, Nabuhiro Suwa, Tom Tykwer, etc). Mas é “um”? Ou por outra: basta juntar uma história com outras, tendo uma mesma cidade como ambientação, para se construir um filme? Ou o que se está construindo, como princípio (comercial, sobretudo), é um produto para o segmento “ilustrado”? Mas esse produto, por estar vinculado a uma lógica de comércio e não a uma “lógica pura da arte”, não seria então um filme?

Há um cérebro-maestro, empenhado em reger os músicos como uma orquestra, com os instrumentos dialogando e potencializando uns aos outros, de modo a termos uma obra? Ou cada músico é um mundo, procurando seu solo em um concerto pautado pela competição entre as partes, como se os diretores ali estivessem mais preocupados em assinar as imagens para se diferenciar dos demais e menos interessados em trabalhar com espírito de soma e conjunto?

Paris Te Amo está inscrito como princípio conceitual nesse segundo caso (o do cada um por si), com um espírito de gincana criativa a reger o encadeamento dos episódios, tendo como elo entre eles o fato de se passarem em Paris. O “Te Amo”, obviamente, sugere um recorte: a cidade como cenário de alguma relação ou circunstância afetiva (termo mais coerente com a crescente configuração de transitoriedade nas aproximações entre os seres). Dado esse ponto de partida, cada um faz do seu modo e, 18 episódios depois, teremos um painel de olhares, originários de países diferentes (França, Espanha, África do Sul, Quênia, Brasil, Alemanha, México, Austrália, Japão), com a maioria dos realizadores nascidos nos anos 60 (com menos de 50 anos, conseqüentemente). Mas qual a lógica curatorial desses 18 convites? Por que esses realizadores e não outros?  Buscava-se na escolha desses nomes uma convivência entre estilos menos ou mais assinados em imagens? Estilos distintos, contudo, estrangeiros entre si: uma babel estética. Basta pensar em imagens para os nomes da escalação (Salles, Van Sant, Coen, Assayas, Cuaron, Craven, Payne). Mas haveria lugar, ou melhor, haveria espírito, digamos, para um Michael Haneke ou Lars Von Trier? Ou eles fariam desandar a proposta mediada por boas emoções com o material?

Quem pode responder é Emmanuel Benbihy, o principal produtor do “18 em 1”, diretor ainda dos planos de passagem que conectam alguns episódios. Benbihy é um nome emergente na produção, com poucos trabalhos na lista de serviços prestados, mas disposição para fincar bandeira em um quinhão. O dele é o dos múltiplos episódios alavancados por uma cidade. Já estão em sua mira uma variação passada em Shanghai e outra em Nova York. Nenhuma novidade, nem na estrutura de episódios com diferentes diretores, muito comum na Itália, na França e no Brasil até os anos 80, nem no “dispositivo” da cidade – cuja principal lembrança é mesmo Paris Visto Por... (com a diferença de que neste todos os cineastas eram franceses), mas que pode remeter ainda a Contos de Nova York (Scorsese, Allen, Coppola), City Life (com 13 diretores, entre os quais Alejandro Agresti, Bela Tarr, Carlos Reichenbach e Krzysztof Kieslowski) ou mesmo uma produção recente de Leon Cakoff e Renata de Almeida em torno de São Paulo.

Emmanuel Benbihy tenta se firmar como mais um produtor transnacional, que mantém relação estreita com lugares em sua lógica comercial, mas não com nacionalidades e compromissos identitários. O contemporâneo pode ser um acúmulo de fragmentos cujo valor e sentido estão na parte e não em sua relação com o conjunto. A multiplicidade tecida de maneira frágil e tênue em Paris, Te Amo é reveladora desse espírito de momento histórico. Nenhum tempo para imersão nos lugares e experiências. Tem de se passar logo para o próximo episódio, matar memória mais que construir presença, cumprir o espírito de gincana. Não há tempo a perder e muitas informações esperando. São 18 episódios, afinal, e espera-se que, se nos segmentos não há tempo de instalação, surja algo da soma.

Mas há em Paris, Te Amo, para além do fetiche com o espaço e com a reunião de um star system cult, um filme pensado como tal? Em alguns momentos, pode-se ver uma visão, sim, se não presente em cada cantinho, ao menos como ocupação predominante. Percebe-se uma insistência em encontros, desencontros, reencontros, rupturas, inícios e experiências efêmeras, nos colocando em contato com diferentes estágios das relações, nem sempre adocicadas ou reconfortantes. Mas, mesmo esses pontos de contato não atenuam a forte impressão de a todo momento um filme acabar e outro começar sem evidenciarem a razão de serem vizinhos em uma mesma narrativa (uma mesma narrativa ou narrativas distintas?)

De maneira geral, ama-se menos Paris, ou quaisquer dos bairros específicos da cidade onde se situa cada curta, e mais o próprio amor. Ou melhor, o fetiche de se amar em Paris, já que, sintomaticamente, muitos personagens são estrangeiros e não falam o francês (o inglês é o idioma hegemônico), nos dando a ver olhares de fora para a cidade, de modo a se construir um olhar intercontinental para mostrá-la ao mundo, olhar de turistas ou de desterrados, não mais os olhares exclusivos dos franceses.

Resta-nos os momentos mais felizes. É uma escolha variável de acordo com o olho de cada um, mas, para mim, surgiu das e nas imagens de Nabuhiro Suwa, Olivier Assayas e Tom Twyker. No de Suwa, há uma despedida, não sem abertura para o “não-realismo” (misticismo, espiritualidade, fantástico, o que se queira). Um olhar de respeito e de aceitação para o que há de determinismo na vida de todos nós: a morte (dos próximos e a nossa). Um pequeno canto fúnebre que se recusa a ambicionar pouco. No de Assayas, há o encontro-desencontro da dinâmica contemporânea, afetos e corpos potencialmente comunicáveis intermediados pela droga, sem problematização dessa cultura, apenas a mostrando como circunstância dramática. E o de Twyker faz a volta inteira para começar de novo, resumindo o lindo processo de conhecimento e relacionamento entre um rapaz cego e uma beleza de moça (Natalie Portman).

Pode-se ainda destacar o recorte cômico para a agressividade parisiense nos Coen, o insólito rasgadamente artificial em Christopher Doyle (o fotógrafo de alguns Wong Kar Wai), o espiritismo light-anedótico em Wes Craven, a esquisitice gibisística-vampiresca em Vincenzo Natali (o mais jovem dos diretores, 37 anos), o otimismo bola baixa em Alexander Payne (pouco convicto no otimismo, mas não na bola baixa), a força dramática e a sedução narrativa em Oliver Schmitz (de carreira toda na tv alemã). São momentos. A soma deles resulta em algo que na falta de nome melhor chamamos de filme. Mesmo sendo vários, cada um para um lado, com uma cidade ao fundo, com amores no horizonte, ou deixados para trás.

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