O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus (The Imaginarium of Doctor Parnassus), de Terry Gilliam (Inglaterra/Canadá, 2009)
por Eduardo Valente

Universos paralelos

A poucos cineastas a expressão "autor" se aplica tanto quanto a Terry Gilliam. No seu cinema deixa-se de lado um pouco o significado metafórico do termo e fica valendo um sentido mais direto mesmo, porque o cinema de Gilliam sempre foi um de criação de mundos. Neste sentido, claro que o título deste seu novo filme já indica se tratar de uma narrativa absolutamente próxima do diretor – algo que se confirmará logo num começo em que uma carroça de teatro mambembe retirada de séculos passados circula pela Londres atual, numa cena que nos lembra simultaneamente de Time Bandits e de alguns planos do Pescador de Ilusões, com os delírios do personagem de Robin Williams pelas ruas de Nova York naquele filme. Logo, um homem adentra um espelho no palco que há na carroça, e emerge num universo completamente onírico (como descobriremos, um reflexo do imaginário daquele que adentra este espelho) – universo este que tem muito a ver com as vinhetas animadas que Gilliam começou criando para os programas de TV e filmes do Monty Python.

Embora seja de fato uma sensação confortável para os que gostam dos delírios mais bem resolvidos de Gilliam (pensamos em Brazil ou em Barão Munchausen, por exemplo), é preciso dizer que a primeira hora do filme mais tropeça sobre si mesma do que caminha. Expondo de maneira bem firme aquele que sempre foi o ponto fraco de Gilliam (a pequena capacidade de sustentar narrativamente o interesse que sua prodigiosa imaginação visual promete), o filme neste começo parece um tanto preso ao excesso de diálogos explicativos e de uma encenação pouco inspirada ao precisar lidar com o espaço apertado da carroça e com a Londres moderna (ainda que estilizada num ambiente, como diz um personagem, “à margem”). Acaba sobressaindo neste momento algumas características menos felizes do imaginário gilliamniano, como uma certa tendência a um tom quase new age bastante cafona e uma maneira de olhar para o mundo à sua volta com um certo desdém redutor e incômodo, como se para afirmar a força do sonho precisasse sempre ser bem óbvio na sua “denúncia” da realidade.

No entanto, lá pela metade da projeção, o filme finalmente encontra um equilíbrio mais adequado, a partir de um fio narrativo bem simples (uma aposta entre o Diabo – ninguém menos que Tom Waits – e o Dr. Parnassus) que acaba permitindo que passemos bem mais tempo no mundo dentro do espelho – que, afinal, é um onde Gilliam claramente se sente à vontade. Ali, seu imaginário surrealista pode aflorar de maneira livre, sem tantas amarras narrativas ou morais, e finalmente decola. A diferença entre os dois espaços, aliás, permite o jogo em que o personagem de Heath Ledger se transforma em Johnny Depp, Colin Farrell e Jude Law com surpreendente sentido conceitual – difícil acreditar, inclusive, que não fosse algo previsto no roteiro, segundo se especulou, e sim um resultado da morte do ator. Ledger que, por acaso, neste que será seu último papel, não está particularmente bem no filme, embora tenha um personagem bem difícil de defender. Vale notar, aliás, que em seu primeiro plano no filme ele está morto, sendo trazido à vida pela “magia do Dr. Parnassus” – o que, se tem um tanto de imagem mórbida no começo, ganha um poético sentido no fim das contas.

Maio de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta