Passe Livre (Hall Pass),
de Peter e Bobby Farrelly (EUA, 2011)
por Thiago Brito
Renovação
Rick
(Owen Wilson, em seu papel de ex-galã) e Fred (Jason Sudeikis)
se encontram em uma pequena encruzilhada: a de buscar harmonia
com sua atual situação de homens casados, ao mesmo
tempo em que sonhos de pequenas escapadelas, veleidades sexuais,
ou aventuras pretéritas continuamente voltam a assaltar
suas mentes sequiosas. E as mulheres (Jenna Fischer e Christina
Applegate), para lá de passadas com tanta infantilidade,
de pronto se resolvem a aquiescer ao alvitre de uma amiga psicóloga:
que lhes dê um passe livre,
uma semana de férias do casamento, onde poderiam entrar
em contato com estas tais
necessidades atávicas, verificarem até que ponto
são tão prementes quanto aparentam e
se ainda vale continuarem o casamento.
É tirando um sarro de Law and Order (o que mais
fazem os Farrelly do que subverter toda lei e ordem?) que começa
a reviravolta. Os meninos, acostumados à sua velha vida,
simplesmente não conseguem se readaptar à vida de
solteiro. Dormem cedo, vão atrás de mulheres em
restaurantes de família (Chilli's, Applebees, Olive Garden),
são nocauteados por brownies "naturais" e bebedeira.
As meninas, por outro lado, calmamente vão entrando em
contato com suas esquecidas vaidades e auto-confiança,
apresentando-se cada vez mais belas, soltas e afáveis.
Pode-se
dizer, com alguma segurança, que não se vê
nada de absolutamente novo, inovador, diferente em Passe Livre.
Ao contrário, aliás. Em nenhuma medida podemos dizer:
bem, é um filme estranho, algo que os Farrelly nunca fizeram
antes. A estrutura de sua narrativa, ou mesmo a composição
das gags e o espírito cômico estão
bem de acordo com o que os irmãos sempre realizaram. E,
afinal, o filme não trata necessariamente de casais em
crise; não há esta necessidade da fundamentação
de uma crise avassaladora que se converteria num tipo de mola
propulsora (tanto da narrativa, quanto do gênio cômico).
Estamos mais é diante de uma obra realizada a partir do
motor da vivacidade; de dois artesãos do gênero que
se decidem a reaplicar a mesma modelagem, e demonstrar como se
insufla, finalmente, vida de volta às suas engrenagens.
O que nos pode causar, pelo menos, duas idéias: que ainda
existe a possibilidade de se retrabalhar dentro de uma estrutura
de gênero bem conhecida e extrair vitalidade e procedência;
ou que a sobrevivência desta estrutura está menos
em sua forma, e mais em sua organização interna,
como se reaplicar métodos "Farrelly" consagrados
servisse para averiguar onde reside, de fato, o cômico,
a graça ou mesmo o embate político. E é com
sua eventual irreverência que os irmãos operam. Mas
o seu jogo não se estende apenas aos personagens e situações,
mas se espelham a nós, espectadores. Pois nada no mundo,
diria o comediante Lewis Black, é mais importante do que
a expectativa.
Tal qual o filme, estes protagonistas estão menos atrás
de uma real mudança que de uma
atualização. Pois o que faz da mise en scène
dos Farrelly um trabalho tão interessante é esta
habilidade de compor um espaço tão propício
à aderência, para logo depois arrematá-lo
de
ponta cabeça. Era este o caso do cachorro, em Quem
Vai Ficar com Mary, que levanta suas
patas para impedir um golpe a seus olhos, como é também
aqui, quando as situações se
apresentam de uma maneira que possam ser reviradas logo depois,
como se o ato de fazer rir
fosse, quase que necessariamente, uma questão de choque:
um choque cômico. O espaço se
transforma neste ninho maleável em que uma circunstância
pode ser, calmamente,
reconfigurada espacialmente. E adicionar esta prerrogativa a uma
determinação narrativa
ocasiona um coeficiente cômico de extrema força.
Afinal, mais engraçado do que ver um
homem envergonhado por ser descoberto querendo uma massagem "especial",
é ver um
homem que faz de tudo para aproveitar sua semana fora do casamento
e não conseguir,
minimamente, uma massagem "especial". É aproveitar
a neurose americana por quartos de
pânico e câmeras de vigilâncias e adicionar
dois homens em uma conversa casual,
despropositada, desmoralizando o dono da casa e fazendo graça
do corpo feminino, aos olhos
ocultos de suas respectivas senhoras. Pois para a comédia,
não há outro jeito: ela é anárquica,
não pode pactuar com nada; nasceu revolta, ácida.
E, se fazer rir é um ato de choque, nada mais resta ao
gênero do que levar tudo às últimas conseqüências.
De alguma forma, os últimos filmes de Todd Philips reanimaram uma velha idéia: em uma
sociedade cada vez mais agrilhoada ao politicamente correto, que a comédia seja, por
excelência, a expressão do politicamente incorreto
(como Downey Jr. dar um soco em uma criança). E é
também por isso que a obra dos Farrelly, atualmente, se
torna importante - pois, a despeito dos sem número de gags
grotescas, escatológicas, hilárias, e mesmo a presença
de personagens socialmente rejeitados, caricatos, existe uma vontade
de expressar aquilo que uma posição mais radical
tende a ignorar. Afinal, o politicamente incorreto se atribui
exatamente a que? O ato político do riso, em grande medida, pode ser visto na sua própria
existência. Rir é uma demolição. Mas o ato político de um filme se estende para além de suas
perfomances cômicas, se aloja também na maneira como propõe sua estrutura e
composição de mundo. E este, para os Farrelly, não é simples, dado, mas, muitas vezes, se apresenta como pequenos jogos de aparências: é aos poucos que uma situação é revelada e - o que é ainda mais acintoso - quando finalmente nos encontramos diante dela, não é à verdade que aspira os cineastas, mas a uma certa política de atualização, de remexer as prateleiras, tirar-lhes o pó e fazer outro uso delas. Fazer delas qualquer coisa, menos uma prateleira.
Em Passe Livre, a questão da monogamia, que em geral se transportaria como fator principal, vai perdendo calmamente sua força, fazendo com que os atos dos personagens não possam se converter em atos de traição, mas em atos de renovação. Ser fiel, monogâmico, quando não parte de uma vontade livre e pessoal, é compactuar com uma ideologia claudicante, envelhecedora. De certa forma, não é preciso uma quebra completa com as estruturas que balizam uma sociedade, ou mesmo que balizam um gênero; é preciso saber recolocar os fatores, de modo que a equação faça novamente sentido. O problema é que esta operação precisa ser perpétua, um esforço contínuo. E, assim, Rick ama sua mulher de fato, ama e sente falta de sua vida de casado, mas esta escolha não parte de uma castração superior, ou coisa que o valha, mas de uma vontade genuína, ou pelo menos da sinceridade deste desejo, e a abertura para esta perspectiva é que faz com que querer o amor, o casamento, a estabilidade, não seja algo ruim em si mesmo, ou conservador - ao contrário, aliás. Qual a diferença entre o amor de Rick e o amor de Fred? É que a comédia acaba quando Rick beija Maggie, mas continua quando Fred beija Grace.
Março de 2011
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